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08 DE MARÇO DE 2007, QUINTA FEIRA
António Bica
Contribuição dialógica para novo paradigma político de esquerda
Que é ser de esquerda? É ser solidário com todos os seres, a começar pelos humanos. É querer contribuir para o avanço significativo para sociedades mais justas. Significa isso que todos somos iguais?
8/3/2007 CONTRIBUIÇÃO DIALÓGICA

Contribuição dialógica para novo paradigma político de esquerda

Que é ser de esquerda?
É ser solidário com todos os seres, a começar pelos humanos. É querer contribuir para o avanço significativo para sociedades mais justas.
Significa isso que todos somos iguais?
Ontologicamente somos iguais todos não diferença de cada ser. Cada um se desenvolve diferenciando-se na unidade da vida, e mais proximamente na unidade da humanidade.
Em que se traduz?
Que se aja pela construção da harmonia entre todos os seres e mais proximamente entre os seres humanos, respeitando-se as diferenças, a evolução divergente e estando-se atento ao contínuo evoluir, que o que hoje é amanhã será diferente.
Ao poder público deve competir a construção de sociedades mais justas?
O poder deve procurar criar condições favoráveis, deixando e mesmo promovendo que cada um procure o melhor para si sem deixar que os menos capazes caiam no desamparo ou exclusão, função esta que deve competir ao poder público. A construção da sociedade mais justa é em primeiro lugar tarefa de cada um de nós os que pensamos que assim deve ser, cabendo ao poder definido periodicamente por todos os cidadãos por eleições livres e periódicas procurar criar as melhores condições para isso.
Como é que cada um procura o melhor para si?
Pelo trabalho, que por ele se conquista a segurança pessoal. O sentimento mais angustiante dos seres conscientes é o de insegurança de vida.
Sendo assim, como organizar as relações de trabalho sem cair na insegurança de vida?
Em base económica e não em base moral. Isso significa que ambas as partes (o empregador e o trabalhador) devem poder livremente pôr fim, por razões económicas, à relação de trabalho com indemnização para o trabalhador, se a decisão for do patrão (sendo razoável a regra de um mês por cada ano de trabalho). Isto é necessário para que a economia tenha boa flexibilidade, que toda a rigidez é entrave ao progresso.
Se a motivação não for económica, deverá haver penalização (indemnização agravada se a causa tiver origem em facto do empregador, perda de indemnização se com origem no trabalhador).
Sendo o trabalho a segurança de vida do trabalhador, como resolver o conflito entre o direito do trabalhador à segurança de vida e a flexibilidade da economia?
Pelo trabalho em empresas de emprego social a organizar a nível municipal financiadas com dinheiro do sistema de segurança social, substituindo o pagamento de subsídio de desemprego.
O trabalho em empresas de emprego social não seguirá a lógica da racionalidade económica, mas a de garantir ocupação socialmente útil a todos os trabalhadores temporariamente fora do sistema de produção, com actividades de apoio a associações culturais desportivas, ambientais, de apoio social e semelhantes nas suas actividades não lucrativas. Assim esses trabalhadores produzem e se evita a fraude que todos os sistemas de subsídio proporcionam.
Quem trabalhará em empresas de trabalho social?
Todos os que procurarem trabalho, incluindo o primeiro emprego.
Por que critérios devem ser remunerados os que trabalham em empresas de trabalho social?
Um pouco menos (talvez 5% a 10%) do que ganharam na média (actualizada) dos últimos 10 anos. Se trabalharam menos de 10 anos a remuneração deverão corresponder à media do sector para igual trabalho. Se estiverem à procura de primeiro emprego, não deverá exceder o salário mínimo. Estas limitações serão necessárias para evitar fraudes e para estimular a procura de trabalho na actividade económica. Por outro lado os trabalhadores no sistema de emprego social deverão poder seguir acções de formação profissional, sem perda de remuneração, para melhorar as capacidades de inserção ou de regresso ao mercado de trabalho.
Qual o principal factor de progresso social e civilizacional?
É o desenvolvimento da economia com crescimento da riqueza colectiva. O desenvolvimento da riqueza colectiva é factor decisivo para o caminho das sociedades humanas para a democracia e a solidariedade.
Quais as condições para que haja desenvolvimento da economia?
São:
- Promoção do conhecimento científico pela investigação.
- Aquisição permanente de conhecimento por todos.
- Cuidados básicos de saúde para todos.
- Não deixar cair ninguém no desamparo.
- Fazer assentar tanto quanto possível a organização da sociedade em automatismos, de modo que a necessidade de intervenção da autoridade pública se reduza ao mínimo, devendo sobretudo procurar criar condições para o melhor funcionamento dos automatismos.
- Assegurar condições para a máxima mobilidade económica e social.
- Respeitar os direitos constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
- Ter em conta que, enquanto houver escassez de bens, cada um terá que ser remunerado segundo o seu trabalho, o que foi defendido pelos teóricos clássicos do socialismo, que só para as sociedades de super abundância (o utópico comunismo) defenderam: de cada um segundo as capacidades, a cada um segundo as necessidades.
- Definição do poder público, a todos os níveis, por todos os cidadãos por eleições periódicas livres.
O contínuo desenvolvimento económico não pode desequilibrar irreversivelmente o ambiente, tornando impossível a vida humana na Terra?
Só por erro isso pode acontecer. Se se criar consciência desse risco, não, que a economia é a produção de bens (objectos e serviços) para benefício dos seres humanos. Toda a acção económica que se desviar disso é perversão da economia, como é a fraude nos negócios, a falsificação de mercadorias, a fuga aos impostos.
Os que lucrarem com essas reversões da economia não poderão levar o ambiente a desequilíbrios irreversíveis?
Podem. Tenha-se em conta que: a produção industrial de comida tem levado à degradação das condições de saúde das populações por desequilíbrio alimentar de que a manifestação mais visível é a progressiva tendência para a obesidade; o uso excessivo de combustíveis fósseis tem contribuído para o aquecimento global da Terra; a produção de numerosos e em grandes quantidades de complexos produtos químicos tem contribuído para desequilibrar o clima e mesmo a biologia dos seres vivos; a escandalosa produção e utilização de armamento clássico, químico (não esquecer o uso de famoso «agente laranja» no Vietnam pelo exército norteamericano) biológico, atómico e outro têm causado mortes, doenças e malformações em humanos e outros seres vivos.
Como lutar contra isso?
Por todos os meios de comunicação que possamos usar colectiva e individualmente.
Mas não são os que mais lucram com as perversões da economia os que controlam os grandes meios de comunicação social?
São. Mas cada um de nós tem a palavra, o telefone, a internete, os pequenos jornais, as pequenas rádios, os espaços e as brechas que se abrirem (por vezes abrem) nos grandes meios de comunicação social. Desse modo pode-se criar contracorrente de opinião à dominante. Essa acção de contracorrente poderá minar a hegemonia dos grandes meios de comunicação social, cuja função, hoje, nas sociedades democráticas e mais ricas, corresponde às que, nas sociedades pré-industriais e industriais, eram exclusivamente cometidas às forças públicas de coerção e às religiões.
Hoje os grandes meios de comunicação social, nas mãos dos interesses hegemónicos que controlam a economia e a política dos Estados, procuram levar os cidadãos a pensar e a agir em conformidade com os interesses dos que os controlam.
Como se caminhou para isso?
A contínua luta popular por direitos económicos e políticos levou progressivamente à conquista do direito de cada cidadão participar na definição do poder político por eleições livres e periódicas. É conquista tão importante no caminho da humanidade para organização mais justa como a da abolição da escravatura. Por outro lado o desenvolvimento científico e tecnológico possibilitou, aos que controlam política e economicamente os Estados, adquirir e usar técnicas de controle da opinião pública através dos grandes meios de comunicação social e das universidades que tendem a estar ao serviço de quem lhes paga.
Os que controlam a economia e por via dela a política usam preferencialmente meios para condicionar o pensamento e o comportamento dos cidadãos por cujo voto se define o poder, para que não fuja das suas mãos.
Nessas condições não restará à esquerda senão procurar tomar o poder por outros meios para substituir a definição do poder político, através do voto universal e periódico, por formação política capaz de impôr organização económica e política que garanta a igualdade efectiva de todos?
Esse objectivo político nunca pode ser de esquerda, porque a esquerda se funda na concepção de que todos os homens são iguais por natureza. Consequentemente não pode aceitar que o poder político se defina de outro modo senão pela vontade livre e periodicamente manifestada por todos.
Esse objectivo é de direita para impôr o domínio político sempre que julga correr o risco de perder o poder, como, por exemplo, aconteceu na Europa, na primeira metade do século 20, com o derrube de regimes democráticos para impor regime ditatoriais fascistas e nazis, e como aconteceu, depois disso, em muitos outros países, de que apenas se cita, como exemplo, o escandaloso caso do Chile em 11 de Setembro de 1973, em que Pinochet derrubou pela força o legítimo poder democrático que jurara defender.
Mas na Rússia, depois da Revolução de Outubro de 1917, inegavelmente de esquerda, a definição do poder político não foi reservada ao órgão supremo do PCUS, maximamente ao seu secretário geral?
Foi desastroso erro político da esquerda não dar então ao povo a definição do poder político por eleições livres e periódicas com direito de voto para todos os cidadãos, na Rússia (depois União Soviética), e nos outros países socialistas, logo que o velho regime foi derrubado e o novo se consolidou.
A Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, possibilitou aos oprimidos de todo o mundo notáveis conquistas (de que já nos vamos esquecendo) como o direito das mulheres à igualdade política, económica e social, o direito dos trabalhadores a protecção na doença, contra o desemprego e na velhice, o direito de voto para todos os cidadãos, o direito dos povos colonizados a libertar-se dos colonizadores, e outros. A apropriação do poder na Rússia pelo partido que tomou o poder, que foi devida a causas complexas, mas em que os métodos políticos e administrativos brutais de Staline, usando o prestígio que usou, da acção decisiva (do Partido) no derrube do velho regime autocrático russo, abafou o princípio da democracia, que é intrínseco à política de esquerda e ao socialismo, com a máscara do «centralismo democrático», que melhor se chamaria «centralismo autocrático» pelas suas práticas políticas autistas. Isso levou ao desastre económico e político, com implosão, o que foi a esperança do mundo para o fim da injustiça e da desigualdade.
O «centralismo autocrático», dito «democrático», produziu gente como Ieltsin, que, tendo ascendido ao «Santo dos Santos» do PCUS, a sua Comissão Política, se tornou o destruidor das conquistas económicas e sociais do povo russo e dos outros povos da União Soviética.
Houve outros casos piores, como a prática assassina de poder, no Camboja, na sequência da guerra no Vietname, por Pol Pot, que o governo norteamericano segurou nas cadeiras da ONU mesmo depois de derrubado no Camboja.
Os métodos do chamado «centralismo democrático» tornaram isto possível. No PCUS e noutros partidos de esquerda gente como Ieltsin e muitos outros chegaram ao poder sem, em verdade, serem de esquerda e muito menos comunistas. Antes carreiristas oportunistas, porque sabiam agradar a quem tinha em cada momento o controle da decisão política segundo o método do «centralismo democrático».
Referiu-se que a organização da sociedade deverá assentar, tanto quanto possível, em automatismos, de modo que a intervenção da autoridade pública se reduza ao mínimo. Em que consiste isso?
Na criação de mecanismos de autocorrecção social.
Uma sociedade humana é demasiado complexa para poder ser entendida por uma parte dela em termos de essa parte ser capaz de determinar o funcionamento e o evoluir sem contradições.
Até agora as sociedades humanas evoluíram de forma não dirigida. O seu progresso tem resultado de leis que no último século e neste se têm procurado determinar, tendo para isso contribuído de forma decisiva Marx.
Mas estamos longe de conhecer todos os complexos mecanismos do funcionamento e do evoluir das sociedades humanas e provavelmente nunca se conhecerão completamente, não obstante o contínuo progresso nesse sentido.
É desejável que as sociedades evoluam sem roturas causadoras de grandes prejuízos.
Não sendo possível determinar completamente o evoluir e o funcionamento das sociedades por desconhecimento da sua complexidade, a organização das sociedades terá que procurar facilitar os mecanismos de autocorrecção económica e social de modo que as alterações se tendam a processar de modo imediato ou quase imediato com o mínimo de intervenção da autoridade pública e consequentemente sem roturas.
A autoridade pública terá assim que intervir fundamentalmente para, pela investigação, aprofundar o conhecimento das leis que regulam o funcionamento e o evoluir das sociedades e, na base desse conhecimento, aperfeiçoar continuamente os mecanismos sociais de autocorrecção. Só nos casos em que os mecanismos de autocorrecção não resolverem as disfunções sociais e económicas é que se tornará preciso intervir para procurar resolvê-las e aperfeiçoar os mecanismos de autocorrecção de modo que, no futuro, solucionem o mesmo tipo de contradições.
Regressando à questão do trabalho que, como se referiu, se baseia em relação de natureza económica e não moral. Sendo assim, como pode levar à máxima produtividade com justiça?
Um trabalhador que vende a sua capacidade de trabalho a outra pessoa procura vendê-la bem, isto é receber por ela remuneração tão alta quanto possível. Como o comprador da capacidade de trabalho tem necessidade de a transformar em bens, procura que a produção de bens por cada trabalhador seja tão grande quanto possível. É o que se designa por produtividade: a relação entre o tempo de trabalho e a quantidade de bens produzidos.
De que depende a produtividade? Fundamentalmente de três circunstâncias: a tecnologia usada na produção, o grau de conhecimentos do trabalhador e o seu empenhamento pessoal.
Quanto à tecnologia usada, ela é decidida pelo empregador, dependendo apenas dele. O empregador é que decide, ao, por exemplo, pôr o trabalhador a fazer cópias de documentos, se compra para isso fotocopiadora, se máquina de escrever, ou se as cópias são escritas à mão.
No caso da construção de uma estrada, o empresário é que decide se vai nela utilizar a melhor e mais potente maquinaria de escavação e de transporte de aterro, ou se a construção vai ser feita a pá e picareta e o transporte do aterro em carros de mão.
Como decorre destes dois exemplos, a produtividade de cada trabalhador é muitíssima maior se a tecnologia que o empregador usar for a melhor.
A produtividade dos trabalhadores depende fundamentalmente da tecnologia que for usada no processo produtivo, sendo a escolha da tecnologia da responsabilidade do empregador. Se o empregador não usar a melhor tecnologia é por rotina, desconhecimento, ou por não querer fazer o necessário investimento.
O grau de conhecimentos do trabalhador é também factor significativo para a produtividade. Mas as habilitações de cada trabalhador são definidas pelo empregador quando o contrata, podendo exigir as habilitações que entender como condição para contratar. Se, depois de ter empregado o trabalhador, quiser que ele melhore os conhecimentos tecnológicos, compete ao empregador fazer a preparação profissional do trabalhador com cursos adequados.
Há finalmente que referir o empenhamento pessoal do trabalhador, que resulta da relação que se estabelecer entre o trabalhador e o empregador. Há empregadores que consideram que para obter boa produtividade devem ser rudes e às vezes brutais com os trabalhadores, procurando assim forçá-los a produzir o mais possível. A normal tendência do trabalhador, que vende a sua capacidade de trabalho por uma quantia mensal fixa e independente do que produz durante o mês, é esforçar-se o menos possível, dando o mínimo de empenhamento em troca de remuneração, se ela, no fim do mês, não variar em função da quantidade de bens produzidos. Os empregadores mais inteligentes, em vez de usar métodos ríspidos e repressivos, procuram usar critérios de remuneração que tenham em conta o grau de empenhamento dos trabalhadores, remunerando-os em função desse empenhamento e do que produzirem, o que corresponde ao princípio a cada um segundo o seu trabalho.


António Bica





 

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