
21 DE MARÇO DE 2018, QUARTA-FEIRA
FONTE: RC
POR: Paulo Fidalgo
marx200
Se é verdade que devemos celebrar Marx e o seu legado, devemos igualmente compreender quanto da sua agenda ficou por desvendar. Tanto mais que os comunistas e a esquerda se têm mostrado menos preparados para enfrentar o presente ciclo político. Se atentarmos ao que seria o plano da obra magna – o Capital - de Marx, ele incluiria um livro sobre o Estado, um livro sobre o trabalho assalariado e um livro sobre a globalização – de acordo com Rosdolsky - que não chegaram sequer a ser esboçados. Curiosamente, não deixa de ser precisamente nestas frentes que hoje a esquerda mostra dificuldade.
Em anos de chumbo, como estes, mais se deve insistir no futuro, agora que celebramos os 200 anos de Marx.
O ciclo histórico do capital que hoje atravessamos parece decalcar acontecimentos dramáticos dos anos 30 do século XX, com afrontamentos entre potências rivais, retorno às guerras aduaneiras, eriçamento nacionalista e guerras por procuração, na Síria, Iraque, em confrontos étnicos e religiosos municiados e manipulados por serviços secretos das potências dominantes.
A verdade é que ideias generosas como democracia, humanidade universal, livre de segmentações nacionais, raça ou religião, e a própria cooperação, ou o socialismo, estão em aparente retrocesso pela tentação xenófoba, o autoritarismo e o preconceito nacional, étnico ou religioso, colocados como falsa saída para a desesperança de uma crise que atira milhões para a exclusão.
Depois do longo período de “ultra-imperialismo”, após a segunda guerra, onde os centros dominantes do capitalismo pareceram entender-se numa détente que facilitou negócios transnacionais, em contraponto com as guerras destrutivas do passado, voltam ao de cima as rivalidades musculadas entre nações, fruto do seu desenvolvimento desigual, competitivo.
O “novo” nacionalismo procura refazer a aliança entre as classes dominantes e sectores populares, dilacerada que ficou pelas consequências da crise de 2008 em que o grande capital atirou as perdas próprias para cima das camadas populares. Perigosamente, para os interesses do grande capital, sectores intermédios afastaram-se do seu tradicional apoio aos partidos do centro e do grande capital, e ficaram disponíveis para fazer outras escolhas. É nessa momentânea rebeldia eleitoral que apareceram a demagogia e as promessas fantasiosas de nacionalistas xenófobos que usam guerras, refugiados, imigrantes e instituições caducas do capitalismo como bodes expiatórios que justificariam as novas jogadas populistas.
Foi para salvar o velho capitalismo que essas novas roupagens políticas surgiram como expediente demagógico para prometer proteção económica contra os estrangeiros, e satisfazer os tiques de estatolatria da pequena burguesia (a adoração do Estado nacional forte, “Fascismo e ditadura” Nikos Poulantzas, 1974) e o cesarismo de Estado, ideologias que antes tinham sido fustigadas pela retórica liberal. É assim, explorando a insegurança das gentes, fruto de uma crise aterrorizadora, que os novos arautos da direita empunham a crença no Estado forte – e no seu líder - dotados que estarão para conduzir os destinos de uma dada nação contra as outras. O nacionalismo traz consigo, também, a promessa de rutura com a orientação austeritária que domina a visão ortodoxa da condução monetária capitalista num contexto de fronteiras porosas e comércio livre. Estes traços, de resto muito aparentados aos fascismos dos anos 30 do século XX, são detetáveis na evolução recente do EUA, Reino Unido, Itália, Áustria, no crescimento da extrema direita em França, para além dos autoritarismos em progressão na Polónia e Hungria. A cartada nacionalista desmascara, contudo, as anteriores cantatas de construção supranacional com que o capitalismo prometeu superar barreiras nacionais e mostra para já a total bancarrota de uma construção global ou regional como promessa capitalista de desenvolvimento. Fica mais evidente como as classes dominantes são incapazes de ir além do marco nacional na sua estratégia de afirmação. E que o nacionalismo é parte constitutiva do capitalismo, onde a retórica globalizadora é nada mais do que a distopia de um férreo domínio de umas nações por outras.
A demagogia nacionalista, impõe naturalmente uma radical crítica, pois que os problemas do mundo exigem mais cooperação, comunhão de esforços e convergência democrática das mais amplas camadas da sociedade. Só a esquerda e os povos estão interessados no valor da cooperação que potencia o desenvolvimento coeso. Essa paciente construção de um movimento e de uma alternativa amplos que torne o nosso planeta um lugar mais aprazível para se viver, impõem a defesa de uma regulação consensualizada da segurança internacional, relações económicas e comércio internacionais, ecologia e cooperação política, que superem progressivamente as rivalidades e gere um ambiente de distensão. É óbvio que uma evolução positiva, na Europa e no mundo, pressupõe vitórias na esfera politica de forças democráticas nos principais países, que apostem na coesão social, redistribuição da riqueza e reforço da solidariedade internacional.
Se é verdade que devemos celebrar Marx e o seu legado, devemos igualmente compreender quanto da sua agenda ficou por desvendar. Tanto mais que os comunistas e a esquerda se têm mostrado menos preparados para enfrentar o presente ciclo político. Se atentarmos ao que seria o plano da obra magna – o Capital - de Marx, ele incluiria um livro sobre o Estado, um livro sobre o trabalho assalariado e um livro sobre a globalização – de acordo com Rosdolsky - que não chegaram sequer a ser esboçados. Curiosamente, não deixa de ser precisamente nestas frentes que hoje a esquerda mostra dificuldade.
Em primeiro lugar, a esquerda opõe-se às políticas austeritárias do grande capital, e à linha monetarista liberal, mas tem sobre o mundo e a natureza uma conduta de combate ao desperdício, ao consumismo e à delapidação dos recursos naturais que são próprios da compulsão capitalista de acumulação e lucro, ao arrepio do que deve ser uma relação equilibrada da humanidade com o planeta. A história mostra que são as classes dominantes que desperdiçam e vivem acima das suas possibilidades e que são as classes populares quem adota uma conduta racional na utilização dos recursos.
Em segundo lugar, a esquerda deve pronunciar-se sem transigência e sem oportunismos – sem ir na tentação eleitoralista – por uma regulação transnacional que aproxime os povos, gere um ambiente supranacional distendido, a favor da cooperação e da regulação democrática da economia global, procurando compromissos com todas as forças que o desejem, mesmo antes que vitórias populares aconteçam nos principais países e como eixo de preparação para essas mesmas vitórias. A construção de um mundo de paz e de uma Europa integrada, é uma condição para que o desenvolvimento possa servir melhor a condição material dos povos. O nacionalismo é, pelo contrário, o caminho da barbárie e do obscurantismo.
Em terceiro lugar, a esquerda deve construir um modelo de políticas e consignas de maior democracia, maior participação e autodeterminação das comunidades, com descentralização e poderes locais e regionais por forma a remodelar o estado central, o grande pilar da hegemonia capitalista. No combate por um mundo novo, é a esquerda que aspira a menos Estado e mais cidadania, a menos estado e mais cooperação de produtores livres associados e são as classes dominantes que em última análises desejam um Estado forte militarizado, antidemocrático, que sustente a hegemonia de classe sobre os trabalhadores. O Estado como aparelho de dominação é uma formação historicamente confinada e um novo mundo socialista impõe a sua substituição, progressiva, por uma administração de protocolos sociais de decisão que organizem a cooperação de todos com todos, num complexo sistema de redes e interações organizadas.
Em quarto lugar, os comunistas e a esquerda devem batalhar pela ideia de que a superação da crise capitalista deve levar os povos e a economia para relações sociais de produção de natureza socialista, cooperativa, dessalariadas, onde os trabalhadores possam auto-organizar-se e conquistar a realização pessoal como condição da realização de todos.
Celebremos o marx200 com os olhos postos nas novas batalhas que iremos travar e vencer.