Há uma espécie de encantamento, incluindo à esquerda, com o novo Presidente da República, porventura esquecendo de onde vem, o que tem sido, e o que previsivelmente virá a ser Marcelo Rebelo de Sousa. A "versão Marcelo" é uma operação de reconfiguração da aparência, sem verdadeiramente alterar os fundamentos da política de direita.
Marcelo quer reverter os termos políticos à direita porque avalia a linha Passos/Relvas como improcedente e facilitadora de um evolucionismo a favor da esquerda.
Evolucionismo esse que estará perigosamente a transpor a barreira entre o centro-esquerda e a esquerda, de forma antes impensável.
Dialeticamente, a manobra de Marcelo surge como negação – da linha Passos Coelho/Relvas – na tentativa de conjurar as ameaças transformando essa mesma linha e restaurar as antigas delícias de bloco central. Neste amplo ciclo histórico que temos vivido, o que se trata é de cumprir Lampedusa: mudar algo para que a antiga ordem das coisas possa prosseguir.
Os dados aconselham, porém, a olhar como estrutural a crise na direita já que a anterior entronização de Passos Coelho/Relvas representou, ela também, uma negação ao que deu sustento a anos de Bloco Central.
Estava esgotado o modelo de encomendas públicas, a linha a que, para simplificar, podemos chamar de keynesianismo de direita. Com ele sucedeu o crescimento do “monstro” estatal progressivamente endividado, de facto, na definição de Miguel Cadilhe, absorvendo recursos que fariam falta ao capitalismo. Se ao keynesianismo das grandes encomendas do Estado ao capitalismo, PPPs incluídas, juntarmos anos de conquistas na esfera laboral e social, podemos entender melhor o sentido da rutura de Passos com os antigos consensos, suportado para mais nas ideias ordoliberais, alemãs, então em voga no conselho europeu.
Passos desfraldou a nova bandeira da arrancada do capitalismo: satisfazer os apetites do capital agiota, financeirizado, com mais juros e condições duras para a dívida, estraçalhar a moldura laboral e social com um aumento radical da relação económica de exploração, emagrecer o Estado empresarial e expropria-lo a favor do capitalismo. Dessa receita sairia, prometia-se, uma milagrosa viragem a favor do investimento e da retoma. Era a utopia da “austeridade expansionária” de Alberto Alesina, uma teoria que não era apenas um oximoro, era mesmo um total disparate, na feliz expressão de um articulista do Finantial Times que não consigo citar com rigor.
Cinco anos de disparate económico, utopia mágica sobre as capacidades dos capitalistas, e de ideologia liberal extremista, levaram a direita e o capitalismo português ao desastre. Em vez de florescimento do capitalismo, foi o vazio. A banca, esse pilar da sabedoria capitalista estava afinal assente na grande trafulhice e sucumbiu estrondosamente. Os negócios retrocederam e, pior, a base de consensos de tipo bloco central fragmentou-se com setores a passarem para uma aberta oposição ao governo de Passos.
Em vez de expansão, sucedeu a retração.
Tanto em Portugal como no diretório europeu, ganhou espaço a corrente a favor de estímulos monetários emulando a orientação dos bancos centrais do Reino Unido, EUA e Japão. O espectro de Keynes voltou a assombrar as hostes da direita. O obscuro Bundesbank foi claramente desautorizado e o canónico capitalista, “The Economist”, passou supreendentemente a acolher nas suas páginas ideias tão radicais como a linha do
Helicopter Money - ver o fundamento desta teoria em
Jordi Galy September 2014, o qual significa nada mais do que dinheiro que vem do céu atirado por helicóptero para a cabeça e os bolsos das pessoas, em vez de ser dado em resgate a bancos que se revelam incapazes de estimular a economia e que desviarão o dinheiro para fins impróprios.
Marcelo parece pretender, portanto, descartar as ideias derrotadas de Passos Coelho para que setores da direita que sempre viveram na base das encomendas do Estado, voltem a fazer negócio e se consiga operar assim uma reconciliação ao velho estilo de bloco central. Para setores da burguesia, mais observadores das disputas económicas internacionais, mais conscientes em como a linha austeritária é prejudicial, importará recentrar a estratégia para a retoma capitalista. Apostar na captação de dinheiros públicos, tornados mais acessíveis pelo estímulo monetário europeu e por orçamentos mais expansionários, jogar de novo nas encomendas e infraestruturas, e ensaiar assim o regresso ao “business as usual” é a visão destes setores.
Marcelo pode representar uma diferenciação política e até no tipo de representação social que o apoia, por via de setores burgueses mais tecnocratas, mais devotados à tecnologia, mas o seu sentido é o de mais capacidade ao capitalismo que vegeta sem iniciativa histórica desde que a crise despoletou em 2008. É bom não esquecer este ponto quando avaliamos a atuação do Presidente da República. É por isso perigoso o jogo de sectores à esquerda se enlearem no tom “modernaço” e conciliador com que Marcelo tem inundado a vida pública. Percebemos que a linha de restauração do antigo arco da governação por via da retoma dos estímulos económicos públicos, poderá até atrair uma parte de sectores que oscilam no apoio quer ao PS, quer ao PSD. Mas voltar ao “business as usual” é precisamente o inverso do que Portugal (e a Europa) precisa.
A “versão marcelo” da direita, é também uma utopia. É a ideia descabida de que o velho regime pode voltar e manter-se. Ela será (e terá) de ser derrotada, pela necessidade histórica de colocar a economia ao serviço de uma sociedade solidária e progressiva.
A “versão Marcelo”, deste Marcelo que herda o nome e talvez o destino do outro, do antigo Marcelo, o Caetano, defronta desde logo a forte oposição dos ultras da direita. Marcelo Caetano foi derrotado pelo 25 de Abril. Mas a derrota consumou-se somente depois da sua operação reconfiguradora da linha da direita ter soçobrado às mãos dos ultras do regime que lhe vetaram qualquer veleidade. A “versão marcelo” actual enfrenta igualmente os ultras acantonados atrás de Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque. Embora se perceba o frenesim para defenestrar Passos da liderança do PSD, por parte das hostes marcelistas, a tarefa ainda está para durar e os ultras não estão a ceder.
O que o centro-esquerda e a esquerda precisam é de apostar em reformar o país, dar nova direção à retoma económica por forma a que o “business as usual” não tente sequer regressar. Os trabalhos do centro-esquerda e da esquerda são demasiado importantes para se deixarem enlear com a querela da direita.