
17 DE DEZEMBRO DE 2015, QUINTA FEIRA
POR: Paulo Fidalgo
Aplicar o acordo e “mais além”
Se o acordo que viabilizou o XXIº governo constitucional for aplicado, com a rapidez desejada, aproxima-se então vertiginosamente a fase em que o centro-esquerda e a esquerda precisam de começar a debater o "ir mais além e até ao infinito" na parábola do célebre filme de animação da PIXAR...
A formidável sequela Toy Story 2, o celebrado filme da PIXAR/Dysney, é uma história de associação de brinquedos, animados, com espírito de cooperação solidária. Nela, o personagem Buzz Lightyear, um boneco que mais parece um astronauta, cheio de sentimentos nobres e audácia, passa o tempo a proclamar a frase “até ao infinito e mais além!” . Ele relembra constantemente ao público que o povo e, neste caso, os brinquedos associados, devem erguer o seu olhar para além do que seja imediato. Deverão, contudo, fazê-lo com perspetiva e sonho para construírem algo de prodigioso.
Lembrar a imagem de Buzz Lightyear faz sentido se refletirmos no acordo que está na base do XXIº governo constitucional, largamente não previsto, mas de facto nada imprevisto. Isto, se tivermos em conta a força com que os debaixo pressionaram as elites políticas, fruto da aprendizagem em anos de luta popular não aproveitada por teimosos bloqueios entre o centro-esquerda e a esquerda.
A nova situação implica um esforço enorme de adaptação e uma elaboração teórica que permitam influenciar, Estado e governo, para lançar avanços reais a favor de um país desenvolvido e coeso. Esse esforço é importante para prevenir abdicações oportunistas que fariam atrasar o avanço social. Sabemos de facto que, depois de um desvio de esquerda, podem às vezes seguir-se desvios de direita.
Aparentemente, a esquerda com a sua anterior negação a compromissos remetia as transformações necessárias para mais ou menos longínquas mudanças, assentes em vitórias eleitorais que lhe permitissem governar em hegemonia. A esquerda pedia aos eleitores “condições políticas” prévias, para só então poder aplicar políticas “claras” e de “rutura”. Sem essas condições asseguradas a esquerda jogava numa reiterada oposição de “princípio”.
Ao mudar, a esquerda inverteu a sua logica anterior de exigir condições especiais e aceitou, e bem, viabilizar um governo em troca de pontos, inadiáveis, embora mínimos. Esgotando-se rapidamente esse programa, torna-se premente a discussão, a breve trecho, do que deverá ser ir “mais além, e até ao infinito”. O que interessa agora, portanto, é trabalhar para gerar condições políticas com apoio de base larga com vista a transformações ulteriores.
Na realidade, as “70 medidas” são aquilo que o velho Marx classificou como economia política dos trabalhadores (escolha económica no interesse dos trabalhadores) quando se referia à conquista do horário de trabalho das 10h00 no século XIX sob a poderosa mobilização da classe operária inglesa. Na saúde, por exemplo, o acordo contempla uma medida de economia politica dos trabalhadores e que é o fim das taxas moderadoras. Ninguém pensará que se resume a isto o programa da saúde dos comunistas e facilmente se concordará que é necessário trabalhar de imediato na mudança de política de saúde com sentido estratégico, para ir “mais além”.
O país, e a União Europeia, precisam de mudanças estruturais. Sem lançar campanha por essas mudanças, por exemplo sem perseguir as urgentes mudanças no sistema financeiro a favor do seu controlo democrático e transparente, sem procurar amplas alianças para a sua concretização, a crise irá perdurar com a estagnação para todo século, a confirmarem-se as previsões dos oráculos do capitalismo.
Ninguém nega que a dialética da mudança pode percorrer pequenos e grandes passos, e momentos de drama político. Nesta fase é necessário, porém, robustecer a dinâmica de reformas convocando toda a criatividade e a arte do compromisso para que a janela de oportunidade criada não se encerre prematuramente.
Esta oportunidade acontece em condições subjetivas mudadas em relação a ciclos anteriores de avanço político. Nas outras vezes havia um quase monopólio partidário na formulação de alternativas pois reuniam os partidos grande parte das forças vivas e do pensamento inovador. Hoje, vivemos uma situação bem diferente com maior necessidade de compromisso e de trabalho unitário, uma vez que as forças ativas são mais diversas e inorgânicas, muitas vezes fora dos partidos, porém desejosas de participar e reinventar um país ferido pela herança do neoliberalismo. Os partidos de esquerda têm de se abrir à sociedade, e a sociedade, pelo seu lado, tem de se dispor a cooperar e debater com os partidos e a procurar com eles construir bases de compromisso. A própria Assembleia da República, por excelência o espaço da democracia, deve abrir portas a audições abrangentes sobre temas candentes de reforma e ser parte do impulso para ir "mais além".
No plano da luta reivindicativa, sindical, torna-se igualmente premente apostar na construção de propostas para "ir mais além". É certo que a recuperação de salários, retoma da contratação, reposição de regras mínimas nas relações laborais, e conquista de uma moldura legal que combata a precariedade, são urgentes. Mas será igualmente importante envolver a base laboral na projeção de linhas de recuperação económica, nas empresas públicas e no sector financeiro, por forma a contribuir para efetivas, remodelação e relançamento económico, sustentados. Luta e propostas, propostas e luta, são indissociáveis do aprofundamento da situação política, sem os quais sairão frustradas as esperanças geradas pelo acordo.
Em simultâneo, deverá prosseguir a mobilização em torno dos compromissos de Portugal com os credores no sentido de conquistar concessões que permitam ao país aliviar os seus encargos e apoiar o relançamento. Devemos mobilizar forças, no País e na Europa, para que a União Europeia adote medidas de estímulo em alternativa às posições hegemónicas, austeritárias, da direita europeia, e aproveitar inteiramente a potencialidade permitida pela cooperação entre países.
Nesta fase, a nossa tarefa é ajudar à rápida aplicação do acordo e mobilizar forças para conquistar reformas no Estado e na economia, sempre com os olhos posto no "infinito e mais além".