06 DE JULHO DE 2011, QUARTA-FEIRA
Paulo Fidalgo
PORTUGAL: Ensaio contra a autoflagelação, de Boaventura de Sousa Santos
Os perigos da presente situação portuguesa levam Boaventura de Sousa Santos a empreender uma vasta discussão dos nossos problemas desde a expansão marítima, à crise do Mapa Cor de Rosa, ao 25de Abril e à integração na União Europeia. E diz-nos como não consolidámos em nenhum desses momentos um projecto de superação das nossas dificuldades.
Numa escrita incisiva e ágil, o autor revela-nos muitas das intuições sobre o possível, e até bem provável, evolucionismo em gestação no futuro próximo da democracia, do Estado, da economia e do posicionamento de Portugal no sistema mundo. Se a nossa relação pioneira com o mundo todo, pareceu abrir novas avenidas, a verdade é que o país e os seus problemas estiolaram na paralisia dos que ficaram. Saímos do rectângulo para procurar fortuna mas não conseguimos criar a fortuna cá dentro em praticamente nenhum domínio. Também a nossa relação com a Europa foi mais um escape à construção de um projecto de identidade na medida em que depositou nas supostas virtualidades europeias a mais do que necessária afirmação do que somos ou queremos ser.
Agora que a UE está a perder tantas das suas promessas, quando afinal o projecto europeu se reveste de tanto eurocepticismo na construção de uma resposta multinacional cooperativa aos desafios de uma globalização liberal e predadora, voltamos a ficar confrontados connosco próprios, com o nosso espaço aparentemente pequeno, confinado.
Porém, Boaventura de Sousa Santos elenca um vasto conjunto de propostas para encontrarmos um caminho de reconstrução, onde obviamente se coloca de novo o problema de Portugal como ente europeu errante, em forma de catalisador votado para o mundo, qual entreposto ou chip que liga as civilizações, os povos do mundo, em desejável colaboração frutuosa. O que implica naturalmente erradicar todos os nossos arcaísmos de mentalidade colonial, de sobranceria étnica ou cultural para sabermos ser actores de um novo mundo a sério.
Também com a Europa, se bem que o nosso destino comum e interesse comum com a Europa também só consiga medrar no contexto de uma importante remodelação europeia com mais democracia participativa, mais coesão e mais alternativa à lógica mercantil e liberal.
A visão do sentido para a acção consciente é, em termos evolucionistas, um quase sacrilégio na medida que é relativamente axiomático na visão simplificada do darwinismo a ideia de que a mutação surge ao acaso e é seleccionada por vantagens que não conseguem ser descortinadas antes de ser desencadeada. Na verdade, podemos arrolar muitos argumentos para considerar que há intuição mutacional quando o artista desenha uma nova forma ou o agente político desencadeia um novo movimento. A evolução ou transformação tem quase sempre, logo desde a génese, uma elaboração consciente pela forma como intuímos os problemas e favorecemos uma dada aposta. E é esse manancial de apostas que Boaventura de Sousa Santos nos fornece no seu importante texto, quase um breviário de boas linhas para alumiar a acção. É, como de resto conclui, um texto para gerar esperança e optimismo e combater a resignação e a passividade. E é disso que estamos bem carentes todos os que passámos a vida a agir em movimentos e projectos alternativos.
Diz-nos como “não se sabe até que ponto a geração à rasca poderá levar a sua luta, nem que aliados vai mobilizar a seu favor. Por agora, o facto de esta geração estar divorciada dos sindicatos é tão preocupante para o futuro dela como para o futuro dos sindicatos. Sem ela, os sindicatos não se renovam; sem eles, a geração cairá facilmente no desespero, a menos que encontre formas de organização inovadoras que não sejam nem os sindicatos nem os partidos”. Esta tese tão óbvia mas continuamente iludida obriga-nos à urgência de empreender o processo de reconstrução dos veículos de acção para aproveitar a singular disponibilidade que as novas gerações estão a revelar.
Noutro passo, Boaventura Sousa Santos afirma que “não se experimentou até agora uma coligação de esquerda, envolvendo o PS, o PCP e o BE. Penso que uma tal coligação pode contribuir para o stress test à democracia portuguesa seja feito com êxito. Nas actuais circunstâncias, não poderá deixar de negociar pacotes de consolidação orçamental mas poderia fazê-lo incluindo nas agendas negociais a alternativa da reestruturação da dívida. Não basta, pois, um governo de esquerda; é necessário um programa de esquerda que proponha medidas que extravasem a ortodoxia financeira da UE e do FMI. Nos próximos anos, esta vai ser a linha divisória entre a esquerda e a direita em Portugal”.
Ora, na presente conjuntura de esfacelo e intensa litigância entre as forças de esquerda esta afirmação não deixa de ser uma forte voz contra o paralisante status quo à esquerda e não deixa de colocar no eixo da construção política uma efectiva possibilidade de saída com pertinência desde já, com toda a urgência, sobretudo quando já se percebe a rendição da velha elite burguesa prisioneira dos atavismos que Boaventura de Sousa Santos nos dá conta ao longo dos momentos definidores da nossa história. De facto, o governo da direita de tão breve existência já dá extensos sinais de como não conseguirá sequer lidar com qualquer dos problemas que enfrentamos. E não será um Presidente da República que brinca aos primeiros-ministros que o conseguirá, para além de afrontar com as suas intervenções a Constituição, a própria legitimidade do resultado eleitoral e das escolhas que os portugueses determinaram nas eleições legislativas.
O livro de Boaventura de Sousa Santos é uma boa-nova, embora não seja ainda a receita toda para enquadrar teoricamente a acção. Engels disse, e está hoje reproduzido em milhares de cartazes do metropolitano em Londres, que “uma grama de acção merece uma tonelada de teoria”.
Serve este aviso para dizer que há muito trabalho a fazer ao nível da teoria para sustentar a racionalidade da acção sob pena de vogarmos apenas no expontaneísmo. Não estou a criticar o excelente trabalho de Boaventura Sousa Santos. Na sua qualidade de pensador e sociólogo, ele fez o trabalho que lhe compete com louvor e distinção. O que está fazer falta é o trabalho em torno da economia política, da remodelação do modo de produção em direcção à transformação socialista, ao arranjo das classes e do papel do Estado. No plano da teoria política, é fulcral elaborar no papel que um governo de coligação portador de um elenco de reformas terá na reconstrução do país e como deve esse programa gerar força e articulação com as acções extra-institucionais, recebendo delas em contrapartida os impulsos para a transformação. Mas isso é tarefa de grande alcance onde deverão os marxistas marcar a sua presença e dar azo à sua natural vocação transformadora.