Comunistas.infoComunistas.infoComunistas.info
QUEM SOMOS
ACTUALIDADE
-
24 DE NOVEMBRO DE 2011, QUINTA FEIRA
Um exercício de memória e de história - Paulo Sucena
Tempo de Subversão - Páginas Vividas da Resistência, de Carlos Brito
As Edições Nelson de Matos trouxeram a público, na sua Colecção História Hoje, a 2ª edição revista e ampliada de Tempo de Subversão, Páginas Vividas da Resistência, de Carlos Brito.
Livro a muitos títulos aliciante e de que apetece destacar a oportunidade da sua publicação num tempo em que se assiste a uma continuada tentativa de apagamento da violência e da opressão política, económica, social e cultural de que foi vítima o povo português durante 48 anos, num tempo em que alguns pretendem mesmo branquear um regime ditatorial sustentado pelo poder económico, pela censura, pela PIDE, por uma legião de informadores, pelas prisões políticas, pelo Campo de Concentração do Tarrafal, pelo medo que as perseguições e os assassínios políticos infundiam no povo, num tempo em que um nonagenário, antigo ministro de Salazar, lhe chamou “santo”, posições estas que, como escreve Carlos Brito, “são claramente incentivadas pelos avanços da extrema-direita em vários países europeus”.

Esta 2ª edição aparece valorizada com três novos capítulos, já pensados pelo autor para integrarem a 1ª edição, de 1989, o que não veio a acontecer por pressão do compromisso assumido por Carlos Brito e a Editorial Avante para que o lançamento do livro se realizasse na Festa do “Avante!”, em Setembro desse ano.

O primeiro desses capítulos trata do encontro de Carlos Brito com o PCP, o segundo aborda o porte na polícia e o terceiro trata de questões relativas à guerra colonial. Aspectos que, por razões diversas, se revestem de inegável interesse para todos os leitores, sejam eles mais ou menos jovens, e que vêm enriquecer ainda mais um livro que abarca 20 anos da vida do autor e da história do Portugal contemporâneo (1954-1974), a maior parte deles vividos sob a égide de Salazar que, na célebre entrevista a António Ferro, publicada no “Diário de Notícias”, declarou: “A nossa Ditadura aproxima-se evidentemente da Ditadura fascista, no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da democracia”, como assinala Carlos Brito numa nota da “Introdução da Primeira Edição”.

O autor de Tempo de Subversão iniciou a sua actividade militante no MUD Juvenil, uma ampla estrutura unitária surgida em 1946, pouco antes da dissolução da Federação das Juventudes Comunistas aprovada no II Congresso Ilegal do PCP, sob proposta de Álvaro Cunhal que, por um lado, considerava que nenhuma das propostas havidas, ao longo dos anos, para alterar positivamente o curso do movimento juvenil comunista alcançara êxito e por outro via no MUD Juvenil uma larga e diversificada organização com condições para promover a mudança necessária.

Temos então um jovem de 20 anos que desperta para a política desenvolvendo uma actividade cívica progressista numa organização juvenil com grande pujança nos 2/3 anos a seguir à II Guerra Mundial e que se manteve activa durante grande parte da década de 50.

Em meados de Dezembro de 1953, Carlos Brito entra de supetão nos meandros mais exigentes da luta contra o fascismo: os meandros da prisão, das solitárias horas encarcerado no Forte de Caxias, o dos “longos corredores” que “mais pareciam as sombrias galerias de uma mina” e o das casernas que “eram sinistras, especialmente quando se estava sozinho e isolado”. Que nefando acto praticara Carlos Brito para ser preso no Aeroporto de Lisboa naquela data? O de ir esperar a escritora Maria Lamas que regressava de uma viagem ao estrangeiro durante a qual se deslocou à União Soviética, país que o regime de Salazar proibia os portugueses de visitar. Deste modo, Maria Lamas, que integrava o Conselho Mundial da Paz, a Associação Feminina para a Paz e a Federação Democrática Internacional das Mulheres, corria sérios riscos de ser presa à chegada a Lisboa. Por tal razão, foi passada nos meios democráticos uma palavra de ordem visando a deslocação do maior número de pessoas para o aeroporto com o intuito de dificultar a prisão de Maria Lamas. Estamos fundamentalmente perante um movimento de solidariedade política, pois vivia-se em plena guerra-fria e a luta contra o imperialismo americano tinha uma poderosa vertente na batalha em defesa da paz. O pólo principal da dinamização desse combate era o Conselho Mundial da Paz, presidido pelo físico nuclear Frédéric Joliot-Curie e que integrava Manuel Valadares, membro do PCP, demitido por Salazar do Instituto Superior Técnico e exilado em Paris onde se doutorara em física nuclear. Sublinhe-se que esta actividade em torno da paz, grandemente impulsionada pelo PCP, já fizera deslocar a Budapeste, em Junho de 1953, para participarem numa reunião do Conselho Mundial da Paz, o professor Ruy Luís Gomes e a escritora Maria Lamas, na esteira do que acontecera em 1948, com a deslocação à cidade polaca de Wroclaw de uma delegação portuguesa, que participou no Congresso Mundial dos Intelectuais pela Paz, constituída por Alves Redol, João Santos, Manuel Valadares e Fernando Lopes Graça. No plano interno, a luta em defesa da paz revestia-se de múltiplos aspectos, tais como a difusão de abaixo-assinados, o envio de telegramas, como aconteceu, em Novembro de 1951, com o envio de um telegrama a Salazar que continha a tomada de posição da Comissão Central do Movimento Nacional Democrático contra a guerra da Coreia.

Quem conhece Carlos Brito não se admira de que o seu carácter generoso e fraterno o levasse a participar nessa recepção a Maria Lamas, ele que também era um militante empenhado na defesa da paz, âmbito em que mais tarde vai trabalhar como funcionário político do PCP. A PIDE considerou esse acto de Carlos Brito e dos outros cidadãos que, como ele, se deslocaram ao aeroporto como um acto condenável por considerar que todos os cidadãos que defendiam a paz e se manifestavam contra a guerra e a bomba atómica eram também, tal como Maria Lamas, hostis ao regime ditatorial.

A este acto de Carlos Brito juntava-se a agravante de ter pertencido a uma comissão que, em Outubro de 1953, ano de eleições para a Assembleia Nacional, alugara uma sala de um prédio da Rua dos Anjos onde durante o chamado “período eleitoral” o MUD Juvenil desenvolveu actividades de diversa ordem, visando o reforço do diálogo entre os aderentes daquele movimento e o estreitamento de contactos com outros jovens democratas. Por força destes dois nefandos “crimes” que, como é óbvio, não suscitaram qualquer processo que levasse Carlos Brito a tribunal, a PIDE manteve preso um jovem estudante de 20 anos durante cerca de dois meses.

Se me alonguei um pouco mais nos comentários a este primeiro capítulo de Tempo de Subversão foi porque o considero um estupendo portal onde se espelha, sem demagogia ou panfletismo, o rosto hediondo de uma ditadura que, cuido, não há extrema-direita ou direita que consiga branquear enquanto a herança de vida de homens como Carlos Brito e a de muitos comunistas e outros democratas continuar a passar de geração em geração.

Permitam-me que ressalte agora o encontro de Carlos Brito com o PCP, primeira etapa de um percurso rapidíssimo que o levou até à “funcionalização” no Partido. Esse encontro ocorreu por finais de Abril de 1954 e verificou-se porque o PCP esteve atento não só ao modo como Carlos Brito se comportou na cadeia, onde inesperadamente caíra com a inexperiência própria dos 20 anos, mas também à sua actividade nos meios estudantis e no MUD Juvenil. Foi responsável por esse encontro o escultor José Dias Coelho que, em 19 de Dezembro de 1961, viria a ser barbaramente assassinado por uma brigada da PIDE quando era funcionário clandestino do PCP.

Carlos Brito confessa que aceitou o convite com alguma vaidade, tanto mais que sabia que a orientação partidária ia no sentido de envolver os jovens, mesmo os simpatizantes do PCP nas estruturas do MUD Juvenil e não na actividade do Partido. A sua primeira tarefa foi a de “fazer o levantamento de uma casa clandestina” que ainda não havia sido “mordida” pela PIDE. No rescaldo dessa tarefa, realizada com pleno êxito, quando entregava o dinheiro provindo da venda da mobília da casa ao dirigente incumbido de o receber, este disse-lhe premonitoriamente: “Temos que te puxar depressa para o quadro de funcionários do Partido se não ainda te tornas vendedor de mobílias”.

Cerca de um ano depois, o camarada Abel, pseudónimo de Américo de Sousa, membro do Comité Central, formaliza-lhe o convite. Carlos Brito, que tinha a sua vida organizada, pediu algum tempo para reflectir apesar de, como confessa, se sentir “lisonjeado com as manifestações de confiança e de apreço” que lhe eram transmitidas. Ultrapassadas dificuldades e resistências, Carlos Brito, no dia aprazado para dar a resposta, disse apenas isto ao camarada: “Muito bem. Quando é que começamos?”.

Carlos Brito iniciou a sua actividade como funcionário do Partido, na legalidade, num período em que se faziam ainda sentir os efeitos de uma acentuada quebra do número de membros do PCP, como Ramiro, pseudónimo de Júlio Fogaça, refere no seu informe à IV Reunião Plenária Ampliada do Comité Central, realizada em Dezembro de 1952. Acresce ainda que, de 1949 a 1953, foram presos sete membros do Comité Central. Carlos Brito assumiu corajosamente, numa época visivelmente difícil, complexas responsabilidades que desempenhou com ousadia e grande eficácia, de tal modo que a Direcção do PCP decidiu propor-lhe a sua passagem à clandestinidade para maior segurança sua e do Partido. Porém, quando já estava tudo preparado para que Carlos Brito “desse o salto”, isto é, passasse à clandestinidade, a PIDE prendeu-o em princípios de Outubro de 1956 em resultado da sua já intensa actividade política. Preso pela primeira vez aos 20 anos, é novamente encarcerado aos 23.

Carlos Brito intitula o capítulo em que narra o seu porte na polícia de “O Sofrimento Passa, a Traição Fica”, frase que encontrou gravada a vermelho num parapeito de madeira da sala onde esteve incomunicável aquando da primeira prisão. Este grito de desespero de quem sabe que o tempo não apaga a traição assumia plena acuidade se tivermos em conta que a vaga repressiva dos finais dos anos 40, princípios de 50, se deveu em grande parte ao facto de vários funcionários clandestinos do PCP terem prestado informações à polícia política de Salazar.

Este capítulo é exemplar, porque escrito duma forma despojada, sem que Carlos Brito tente fazer de si próprio um retrato de herói ou mártir, mas apenas mostrar como a força da razão e a profundidade das convicções foram em si bastantes para suportar a brutalidade das torturas e a pressão psicológica que os pides sobre si exerciam, ameaçando-o de ir apodrecer na cadeia. Brito sintetizou o que acabo de escrever numa quadra:

Se um homem está no segredo
Com a força da razão,
Não há tortura nem medo
Que o arrastem para a traição.


Carlos Brito não deixa de lembrar outros camaradas que, animados pela força da razão, asseguraram ao longo dos anos a “própria sobrevivência do PCP, nas condições de feroz perseguição que contra ele foi desencadeada”. E fá-lo, dizendo que essa sobrevivência do PCP “deve-se em grande medida à capacidade de resistência da plêiade de revolucionários inabaláveis que soube forjar e que se mostraram capazes de resistir às piores torturas e violências quando passaram pela prisão”.

Dessa história heróica faz parte a fuga do Aljube, consumada na madrugada de 25 de Maio de 1957, minuciosamente contada neste livro, que teve como protagonistas Américo de Sousa, Carlos Brito e Rolando Verdial que mais tarde veio a trair o PCP na polícia, acabando mesmo por vir a colaborar com a PIDE. Eis um retrato de luz e sombra de uma história com muitas grandezas e algumas vilezas.
A história de resistência e firmeza, de coragem e abnegação de Carlos Brito, enquanto funcionário político do PCP, regista um novo capítulo, em Junho de 1959, com mais uma prisão, concretizada com tal violência que o militante revolucionário teve de ser internado no Hospital de S. José para tratamento de múltiplos ferimentos, antes de ser enviado para o Forte de Peniche depois de uns breves dias no Aljube onde não convinha mantê-lo muito tempo porque dali já ele fugira. Julgado em Dezembro de 1960, só é libertado em Agosto de 1966 tendo regressado à luta clandestina em Outubro desse ano. Era aquela a vida que tinha escolhido para si. Uma vida em prol da libertação do povo português da tirania fascista.

Tempo de Subversão, do ponto de vista do desenvolvimento da matéria narrada, apresenta-nos, de seguida, ao longo de alguns capítulos, um conjunto de episódios muito diversos, mas todos eles prenhes de interesse, ocorridos no período de clandestinidade vivido por Carlos Brito entre 1966 e Abril de 1974, em que o autor sublinha os perigos e as exigências que quotidianamente se colocavam a um revolucionário clandestino.

Carlos Brito oferece-nos depois uma reflexão bem informada sobre a guerra colonial onde salienta a importante viragem do Vaticano em relação à política colonial portuguesa, protagonizada pelo Papa Paulo VI que, em 1 de Julho de 1970, concedeu uma audiência aos líderes do MPLA, da FRELIMO e do PAIGC, organizações que conduziam a luta armada pela independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Carlos Brito mostra-nos nos capítulos finais, “O Princípio do Fim”, “A Propagação das Greves”, “Missão Cumprida!”, o crepúsculo do regime fascista e o alvorecer da liberdade. O autor escreve no último dos três capítulos citados que “nos princípios de Março de 1974, a revolução rondava de facto. A atmosfera política estava ao rubro. Nunca a queda da ditadura parecera tão possível e tão próxima. O factor novo que precipitava a situação e inscrevia aquela possibilidade na ordem do dia era o Movimento dos Capitães”. Aliás, “já em Julho do ano anterior, o Comité Central do PCP tinha concluído: «A crise do regime enfraquece-o consideravelmente e reduz a sua capacidade não só para resolver os próprios problemas como para fazer frente ao descontentamento e à luta do povo português».

A ditadura estava na verdade a chegar ao fim e o facto de Carlos Brito ter conhecido a data aprazada para a saída do movimento com dois dias de antecedência permitiu à organização comunista da área de Lisboa tomar medidas, desde muito cedo, em relação à intervenção popular, segundo nos relata o autor de Tempo de Subversão. O Movimento dos Capitães e o povo rasgaram finalmente a noite fascista e iluminaram Portugal com a luz da liberdade. Carlos Brito termina as suas memórias com a frase “Missão Cumprida!” que dirigira a Joaquim Gomes, na altura dirigente dos órgãos executivos do PCP, “no dia 27 de Abril, já com os presos políticos em liberdade, a PIDE/DGS dissolvida e a revolução em marcha acelerada”.

Permito-me, a terminar, tecer algumas considerações acerca da frase “Missão Cumprida!” que claramente remete para o trajecto vitorioso que foi percorrido desde uma situação ditatorial que, por múltiplas razões, aviltava o país que o regime fascista lançara numa guerra colonial sem solução até à criação de uma nova circunstância que nos devolveu a liberdade e as liberdades fundamentais, instaurou a democracia, pôs termo à guerra colonial, permitiu a livre existência de partidos políticos democráticos, devolveu ao povo a sua própria voz, que se tornou cada vez mais uma voz interventora. Todavia, gostaria de acrescentar uma outra perspectiva, a de que estamos hoje a viver num tempo e numa circunstância que Ernst Bloch, filósofo alemão de raiz marxista, autor de “Princípio Esperança”, obra em que desenvolve uma ampla análise filosófica “da existência humana aberta ao futuro”, designaria por noch nicht, o tempo e a circunstância do ainda-não que contém, no entanto, em si a “possibilidade de tornar-se outra coisa”.

Deste ponto de vista, estamos a viver um momento histórico do ainda-não, sob a brutal opressão do capitalismo neoliberal, por isso Carlos Brito, militante revolucionário que assume, com Walter Benjamin, que o mundo é a nossa tarefa, continua no seu posto, quero dizer, na trincheira onde estão os que lutam por um Portugal livre, justo, culto e solidário, sem opressores e oprimidos, e por um mundo melhor ou seja, por aquela terra sem amos com que milhões de humanos sonharam e por ela deram a vida. Só então, e provisoriamente, o comunista Carlos Brito poderá dizer: Missão Cumprida!


 

O seu comentário
Os campos assinalados com * são de preenchimento obrigatório

Digite em baixo os caracteres desta imagem

Se tiver dificuldade em enviar o seu comentário, ou se preferir, pode enviar para o e-mail newsletter@comunistas.info.