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18 DE SETEMBRO DE 2010, SÁBADO
POR: Mário Jorge
FÓRUM SAÚDE-Serviço Nacional de Saúde, um direito, um dever.
"O SNS enfrenta mais um dos momentos difíceis da sua existência, agora por via da tentativa da nova direcção do PSD em destrui-lo a pretexto de uma proposta de revisão constitucional." Começa assim a intervenção de Mário Jorge no Forum da Saúde.
Porto, 18/9/2010

O SNS enfrenta mais um dos momentos difíceis da sua existência, agora por via da tentativa da nova direcção do PSD em destrui-lo a pretexto de uma proposta de revisão constitucional.

Esta clara incompatibilidade de alguns sectores do PSD com o SNS já se tinha manifestado em 1982 quando um governo presidido por Pinto Balsemão desencadeou a primeira tentativa de destruição do SNS através do DL nº 254/82.

A pretexto de transformar as administrações distritais de saúde em administrações regionais de saúde, esse decreto-lei revogou 46 artigos da Lei de Bases do SNS.

Em 1984, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão nº 39/84, declarou inconstitucional o DL nº 254/82.

Durante cerca de 3 décadas assistimos a uma intensa campanha ideológica de exorcização do Estado social.
Segundo essa campanha, tudo o que era gerido pelo Estado só conduzia a resultados negativos e que tudo o que era gerido por privados tinha, desde logo, o êxito assegurado.

Recentemente assistimos ao desmoronamento de múltiplos impérios económicos multinacionais e ao reaparecimento de políticas de nacionalização de empresas por parte de vários Estados, a começar, pasme-se, pelos Estados Unidos.

Os mesmos sectores que andaram décadas a exorcizar o Estado, quais militantes radicais anarquistas, passaram a exigir, de um dia para o outro, que o Estado devia impedir essas falências assumindo a gestão dessas grandes empresas, nomeadamente de empresas bancárias.

No nosso país assistimos também à necessidade do Estado intervir em entidades bancárias para evitar maiores repercussões a nível da economia nacional.
Afinal, tornou-se claro que a tão apregoada superioridade da gestão privada era um mito propagandístico para justificar a parasitação dos dinheiros públicos com negócios privados.

Ora, com estes acontecimentos bem presentes e com os escombros desses desmoronamentos ainda a fumegar, eis que a nova direcção do PSD vem apresentar essa proposta de revisão constitucional para transformar em negócio o direito constitucional à saúde, insistindo em medidas ainda mais radicais da mesma política neoliberal que está na origem do actual contexto de crise internacional.

Se tivermos uma abordagem desta iniciativa com o mínimo de rigor teremos de concluir que não é uma surpresa.

O anterior governo de coligação da direita criou os hospitais SA, criou um diploma legal para assegurar a integral privatização dos Centros de Saúde e outro para as chamadas parcerias público-privadas, neste último caso com o desencadeamento de alguns concursos.
Foi esta a herança deixada ao actual Governo.

Os hospitais SA, que possuíam uma estrutura legal directamente apontada à privatização quase imediata, foram substituídos pelos EPE, sem estar prevista a alienação das quotas dos accionistas Ministérios da Saúde e das Finanças.

Ou seja, a responsabilidade da quase totalidade dos hospitais hoje transformados em EPE é, em pé de igualdade, destes 2 ministérios, deixando de estarem somente sob a tutela do Ministério da Saúde.
Relativamente à programada privatização dos centros de saúde, foi tomada a decisão de revogação dessa legislação e desencadeado um processo de reforma dos Cuidados de Saúde Primários.

Quanto aos concursos de parcerias público-privadas, embora a sua anulação trouxesse pesadas implicações indemnizatórias para o Estado, há que ter bem presente a sucessão de polémicas em cerca de 15 anos de experiência desta medida em vários países, sendo de sublinhar a situação do governo regional escocês e de vários estados canadianos estarem a anular progressivamente esses contratos, dado que os custos crescem sem cessar não se traduzindo por quaisquer benefícios concretos para as respectivas populações.
Uma das implicações mais delicadas para a sustentabilidade e eficácia de desempenho do SNS é a sua invasão com lógicas de gestão empresarial.
A gestão privada e a gestão pública possuem princípios gerais enquadradores específicos que não são susceptíveis de mistura.

Por exemplo, o Prof. Federico Tobar, um dos mais conceituados especialistas de gestão em saúde em todo o continente americano, chama a atenção para as seguintes diferenças conceptuais entre os 2 tipos de gestão:

 A empresa privada existe para maximizar o património dos accionistas / A organização pública existe para atingir uma missão que é considerada socialmente valiosa.

 O resultado financeiro é o critério de bom desempenho para a empresa privada/ A eficiência e a efectividade no cumprimento da missão é o critério de bom desempenho no serviço público.

 A empresa privada identifica capacidades distintivas para a criação de valor/ O serviço público identifica melhores alternativas para cumprir a sua missão.
Ora, com estas diferenças claras, quando são feitas tentativas de enxertar lógicas empresariais em serviços públicos os resultados não podem ser positivos nem os problemas podem ser resolvidos.
No caso concreto dos Hospitais SA, importa lembrar que logo no primeiro ano da sua implementação os resultados foram absolutamente desastrosos e implicaram até o recurso, em múltiplos casos, aos próprios capitais sociais.

Apesar de o actual modelo EPE não permitir a evolução para lógicas privatizadoras, possui no seu âmago concepções empresariais.

Esta é uma das razões fundamentais que determina o contínuo agravamento das dívidas destes hospitais e que os dois já citados ministérios não conseguem solucionar.

Há que reconhecer com coragem política que a empresarialização da saúde fracassou aqui como está a fracassar na generalidade dos países mais desenvolvidos.

Simultaneamente, importa sublinhar que a defesa do SNS impõe uma contínua melhoria dos seus mecanismos de gestão e de funcionamento.

Defender o SNS não pode ser sinónimo de posicionamentos imobilistas e cristalizados que rapidamente conduziriam ao seu definhamento irreversível.

A experiência em desenvolvimento em torno da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários, e concretamente a nível da implementação das USF (Unidades de Saúde Familiar), como centros de produção e custos associados à indispensável contratualização pública e a um sistema de incentivos institucionais e financeiros, mostra que são possíveis medidas de fundo no âmbito da gestão pública sem o recurso aos tais enxertos empresariais.

Mas a experiência concreta mostra também que a gestão privada do Hospital Amadora/Sintra não conseguiu fazer mais e melhor que os hospitais públicos, muito pelo contrário, o que motivou a decisão do actual Governo em não renovar o respectivo contrato de gestão.
Neste contexto global da saúde existe um outro aspecto de primordial importância para o contínuo desenvolvimento do SNS e que são os seus recursos humanos.

No caso concreto dos médicos, é indispensável ter presente que a existência de carreiras médicas devidamente estruturadas, com parâmetros definidos de evolução técnico-científica e objecto de sucessivos concursos de progressão profissional tem contribuído decisivamente para a consolidação do SNS e para a obtenção dos resultados reconhecidos internacionalmente pelas instâncias de referência.
As carreiras médicas foram, desde sempre, um dos elementos indissociáveis do SNS.

Aliás, a primeira vez que foi publicamente apresentada a reivindicação de criação de um SNS foi no conteúdo do “Relatório sobre as Carreiras Médicas”, apresentado em 1961, e que teve como principais redactores o Prof. Miller Guerra, o Dr. Albino Aroso, o Dr. Mário Mendes e o Dr. António Galhordas.

As carreiras médicas possibilitaram um contínuo acréscimo da qualidade assistencial do SNS.
Ao contrário das campanhas que ao longo dos anos vários intérpretes desencadearam contra as carreiras médicas em particular, estas nunca representaram quaisquer concepções de carreirismo ou de corporativismo.

Foram as primeiras a criar na Administração Pública concursos rigorosos e com regulamentos bem definidos, tendo sido criadas em diploma legal pela primeira vez em 1982, com o então secretário de estado da saúde Dr. Paulo Mendo, no meio de grande contestação corporativa da direcção da Ordem dos Médicos.

No actual contexto de crise económica internacional, a questão da saúde assume uma importância acrescida.
Amartya Sen recebeu o Prémio Nobel da Economia em 1998 na base da sua análise de que os países onde as condições de saúde são mais uniformes dentro da população apresentam melhores condições para o crescimento económico.

Por outro lado, Federico Tobar chama a atenção que “ diversos estudos sobre equidade no financiamento de serviços geraram evidência suficiente para afirmar que o gasto público na saúde, nomeadamente nos cuidados primários, regista um elevado impacto redistributivo permitindo corrigir as desigualdades que gera o funcionamento da economia”.

Federico Tobar refere ainda que os “ serviços de saúde para pobres convertem-se em serviços pobres, a sua qualidade deteriora-se, a sua efectividade diminui e não melhoram a equidade nem reduzem os custos da saúde”.

Esta avaliação é a mais elucidativa desmontagem dos pressupostos da proposta de revisão constitucional do PSD para a saúde quando refere que “ em caso algum o acesso pode ser recusado por insuficiência de meios económicos “.

E como é feita a prova de insuficiência de meios económicos de um cidadão?

Significa retornar aos tristemente célebres “atestados de indigência” que as Juntas de Freguesia emitiam nas décadas de 1950 e 1960 para as pessoas não pagarem os cuidados de saúde e os internamentos?

Para quem tem atacado tanto este Governo devido aos mecanismos de acesso ao rendimento mínimo garantido/rendimento social de reinserção, não deixa de ser curiosa esta nova proposta.

Estamos, pois, numa situação que é decisiva para o futuro do SNS, tornando-se inadiável adoptar um amplo conjunto de medidas de redinamização de toda a sua estrutura.

E esta acção é para “hoje”, porque, como diz o refrão de uma recente canção de um conhecido músico aqui do Porto, “amanhã é sempre tarde demais”.
O projecto de revisão constitucional da nova direcção do PSD coloca-se num patamar de autismo político dificilmente imaginável.

Num momento em que nos Estados Unidos, que é a expressão mais acabada da privatização da saúde, o actual presidente Obama desenvolve intensos esforços para estabelecer as bases de uma cobertura universal de cuidados de saúde, a direcção do PSD apresenta propostas deste conteúdo anti-social e de clara negação da solidariedade humanista que está impregnada na matriz do SNS.

O SNS é, pelos seus resultados concretos reconhecidos internacionalmente, uma das mais marcantes realizações do nosso regime democrático e constitucional e constitui um dos indicadores inequívocos da evolução civilizacional da nossa sociedade.

Ao contrário dos seus detractores, o SNS nunca foi sinónimo de qualquer perspectiva estatizante da saúde, como os números bem atestam.

Segundo o próprio Relatório Mundial da OMS de 2001, as despesas públicas de saúde no conjunto global das despesas nacionais em saúde representavam somente 57,5%.

Neste momento particularmente delicado, em que a ofensiva contra o Estado social assume proporções preocupantes, importa consensualizar medidas urgentes que tenham em conta as abordagens diferenciadas que existem sobre cada área de intervenção.

O meu mero contributo pessoal num fórum desta natureza, como espaço de discussão livre, no que se refere a algumas medidas concretas para consolidar a sustentabilidade organizacional e financeira do SNS, é o seguinte:

 Estabelecer os parâmetros de uma “ nova gestão pública” com base no desenvolvimento de um conjunto integrado de medidas a nível da organização e funcionamento de todos os serviços, com a definição de objectivos claros em cada instituição de saúde, com a adopção de mecanismos de avaliação regular das actividades e com a responsabilização integral das administrações e direcções de serviço pelos resultados obtidos.

 Estabelecimento de uma política geral de contratualização de objectivos em cada instituição de saúde e em cada um dos respectivos serviços.
Nesse sentido, há que adoptar contratos-programa e orçamentos-programa, tornando transparente toda a estrutura de contratualização.

 Intervir nas áreas da gestão, da organização, da racionalização de recursos e do combate aos desperdícios em vez de dar prioridade a cortes orçamentais cegos ou a aumentos igualmente cegos do financiamento. Os cortes orçamentais cegos resolvem pontualmente, e numa situação muito transitória, os problemas de verbas disponíveis. Sem actuar directamente nas referidas áreas, os cortes terão de se repetir ciclicamente e o aumento de verbas nunca estabilizará. Com o actual volume de verbas é possível fazer mais e melhor se a prioridade de intervenção se situar nos planos estruturais e de gestão.

 Adoptar mecanismos de autonomia das estruturas intermédias de gestão, com a consequente responsabilização pelos resultados, como já acontece nas USF. Os CRI hospitalares, que estão previstos no Programa do Governo, há muito que deveriam estar já em fase de implementação.

 A Reforma dos Cuidados de Saúde Primários deve ser acompanhada urgentemente de uma correspondente e articulada Reforma da Rede Hospitalar, sob pena de não existirem quaisquer sinergias mutuamente potenciadoras na redinamização do SNS.

 Generalização de programas da melhoria da qualidade em saúde, como um dos instrumentos fundamentais de combate aos desperdícios e sistematizadores da boa utilização dos recursos disponíveis.

O PS transporta na sua carga genética o SNS. Por outro lado, as políticas sociais são hoje uma marca bem distintiva entre a Esquerda e a Direita conforme estamos, de novo, a assistir.

A defesa e a revitalização do SNS são um imperativo de evolução civilizacional, sem o qual a própria coesão social do nosso país ficará seriamente comprometida.
No ano em que se comemora o centenário da República, há que honrar os princípios e os valores republicanos da ética, da dignidade e da solidariedade humanistas, tão presentes na matriz identificadora do SNS.

Os diagnósticos estão há muito efectuados e o que é necessário, neste momento, é Acção firme e determinada na construção de soluções prioritárias.

Se é um dado adquirido pela dolorosa experiência histórica que as Democracias não se constroem sem democratas, também a defesa e a revitalização do SNS não se fazem sem empenhados e sinceros defensores da sua matriz identificadora.

Mário Jorge Neves


 

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