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31 DE JANEIRO DE 2010, DOMINGO
FONTE: Público
POR: José Aranda da Silva
Serviço Nacional de Saúde: a despesa e o investimento
A actual conjuntura não nos parece favorável a medidas que visem desregular o sector
"A actual conjuntura não nos parece favorável a medidas que visem desregular o sector e, paradoxalmente, constata-se que algumas medidas de liberalização tomadas nos últimos anos não obtiveram os resultados anunciados e estão a ser revertidas em diversos países face à ausência dos resultados inicialmente anunciados e às ineficiências geradas com a aplicação dessas medidas."
Os sistemas de Saúde têm dado um importante contributo para o desenvolvimento das sociedades modernas.
A melhoria do bem-estar dos cidadãos é mensurável, quer através do espectacular aumento da esperança de vida nos últimos anos, quer através de outros indicadores objectivos divulgados regularmente pela Organização Mundial de Saúde e a OCDE, consultáveis nos seus sítios da Internet.

O aumento da oferta de serviços nos hospitais e centros de saúde, as melhorias organizativas e infra-estruturais e o aumento da qualidade de vida conseguida para muitos cidadãos, através das medidas preventivas de saúde pública e da introdução de novas tecnologias de saúde, são factores determinantes para a mudança radical do estado de saúde das populações em apenas algumas décadas. O indicador mais espectacular, para além da diminuição da mortalidade infantil, é a esperança de vida ser superior à média europeia, traduzindo-se em cerca de mais doze anos que em 1970.
As novas técnicas cirúrgicas, sendo a cirurgia cardíaca e os transplantes renais e hepáticos em Portugal uma referência a nível mundial, os medicamentos que transformaram doenças agudas em crónicas controladas, como é o caso das doenças cardiovasculares, articulares e a SIDA, e o desenvolvimento de vacinas para doenças devastadoras há apenas cinquenta anos são alguns exemplos com evidência indiscutível do enorme progresso da humanidade.

Um dos grandes ganhos da humanidade no século XX, principalmente nos países desenvolvidos, foi a organização de sistemas de saúde, estruturados maioritariamente com financiamento público, que permitem responder às necessidades sanitárias das populações e às novas ameaças resultantes do próprio desenvolvimento.

A criação, a organização e o desenvolvimento dos sistemas de saúde foram e são um factor de desenvolvimento económico, não só pelos resultados obtidos na saúde da população, permitindo uma intervenção socialmente mais activa, mas também pelo contributo para o crescimento económico, devido aos necessários investimentos tecnológicos e infra-estruturais. A criação de emprego, em grande parte com elevado grau de diferenciação técnica, é também um motor para o desenvolvimento.

É claro que esta evolução teve custos. No caso de Portugal, a despesa com a saúde, que era pouco superior a 2% do PIB no início dos anos 70, passou para valores de cerca de 10% em 2007.

Periodicamente, de forma homogénea e quase simultânea, surge nos diversos órgãos de comunicação o espectro do crescimento da despesa do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Sublinho SNS, pois é essa a despesa que é posta em causa e não a despesa directa dos cidadãos com a saúde, que, no caso de Portugal, é das mais altas da União Europeia. O problema aparece habitualmente num determinado momento, através de agências de comunicação que, naturalmente, estão a servir um dos seus clientes.

A questão do acesso aos sistemas de saúde e do crescimento dos gastos com saúde, tanto privados como públicos, é um problema transversal a todos os países desenvolvidos. No caso dos Estados Unidos (EUA), é um dos primeiros problemas que a Administração Obama pretende resolver.

A situação em que vivemos, resultante dos problemas internos da nossa economia, da crise internacional e das questões associadas ao elevado défice orçamental, tem levado a que algumas correntes económicas, com grandes responsabilidades na actual situação, venham a eleger o investimento nas áreas sociais, nomeadamente na saúde, como a principal causa da crise.

Consideramos indispensável uma política nacional para reverter o défice orçamental e o grave problema da dívida externa. No entanto, não devemos confundir as razões do défice orçamental com a dívida externa, cujas causas não são totalmente sobreponíveis.
Temos de avaliar quais as medidas mais eficazes a curto e a médio prazo e não as reduzir a meras acções contabilísticas conjunturais ou de engenharia financeira que adiam os problemas sem os resolver estruturalmente.

Resultados anunciados recentemente pela OCDE , referidos no artigo de Jorge Simões no PÚBLICO (11/01/2010), divulgam o bom desempenho das contas com a saúde em Portugal na década de 1997 a 2007 e que originaram significativos ganhos em saúde nesse período.

Recordo, no contexto das comemorações dos trinta anos do SNS, as palavras de António Barreto: "O sistema de saúde e o Serviço Nacional de Saúde, em particular, foram capazes, melhor do que outros serviços públicos, de se adaptar a uma sociedade que mudou intensamente, mas sobretudo rapidamente", e referindo-se a um relatório do Tribunal de Contas que identifica alguns desperdícios de recursos: "Apesar deste desperdício, mau grado as deficiências de organização. De eficácia e de racionalidade, mantenho a afirmação feita acima: a saúde portou-se melhor do que os outros sectores sociais e públicos".

A nível mundial, duas notas são comuns em todas as medidas tomadas nos diferentes países para resposta à crise internacional. A necessidade de uma maior eficácia dos sistemas reguladores das diversas actividades, que aparentemente estavam capturados pelos regulados, e um maior investimento público em áreas estruturantes da sociedade e geradoras de emprego. Qualquer destas medidas afecta o sector da saúde e o conjunto de actividades com elas relacionado.

No que se refere ao sistema regulador, a saúde e o medicamento em particular já são objecto de profunda regulação que, no entanto, tem sido muitas vezes posta em causa, com o pretexto da necessidade de obter uma maior eficiência económica.

A actual conjuntura não nos parece favorável a medidas que visem desregular o sector e, paradoxalmente, constata-se que algumas medidas de liberalização tomadas nos últimos anos não obtiveram os resultados anunciados e estão a ser revertidas em diversos países face à ausência dos resultados inicialmente anunciados e às ineficiências geradas com a aplicação dessas medidas.

A tendência para um maior investimento na saúde é uma medida importante para os cidadãos, profissionais de saúde e todas as actividades relacionadas. Nos últimos anos, diversos estudos e posições de organizações internacionais, como a Organização Mundial de saúde (OMS), permitem constatar que o investimento em saúde é um factor determinante para o desenvolvimento económico. Neste contexto, vem agora reforçar-se a necessidade de realizar esse investimento como uma das formas de responder eficientemente perante a "crise".
Em 2009, na conferência de ministros da Saúde da UE, realizada em Tallin, reafirmou-se que a despesa pública em saúde devia ser encarada como um investimento. De acordo com a declaração dos ministros ministros , investir em saúde é investir no desenvolvimento humano e bem-estar social. Sendo, no entanto, referido também na mesma declaração que se deve sistematicamente avaliar e demonstrar o desempenho dos sistemas de saúde.

Nesta nova situação, estamos assim perante uma grande oportunidade para o desenvolvimento qualitativo dos sistemas de saúde.

É interessante analisar as propostas do Presidente Obama visando o aumento da cobertura dos cuidados de saúde nos EUA. Estas alterações de paradigma, bem como os investimentos previstos em "tecnologias da informação" na área da saúde, vão ter como consequência um sistema com um menor número de erros e uma gestão do risco mais eficiente e, possivelmente, mais abrangente e credível.

Os investimentos em saúde, para além da condição básica de evitarem desemprego e gerarem emprego, são estruturantes no desenvolvimento económico e aumentam a qualidade de vida dos cidadãos e das sociedades, tornando-os socialmente mais úteis.

Neste quadro de aparentes oportunidades, os recursos continuarão, no entanto, a ser limitados, pelo que a sua utilização terá de obedecer a critérios objectivos na escolha das prioridades de investimento. Por exemplo, nas Parcerias Público-Privadas (PPP), temos de avaliar se estas trazem vantagens para a eficiência dos sistemas de saúde ou se são apenas uma operação de engenharia financeira que transfere para as futuras gerações o pagamento dos investimentos na saúde. Temos de melhorar a eficiência do SNS identificando as causas de desperdício e tomando medidas para a racionalização do sistema a nível organizativo e a nível da aquisição de tecnologias.

Se tal não acontecer, vamos a breve prazo voltar a considerar a saúde como uma difícil despesa a controlar, e não como um investimento determinante para o desenvolvimento económico do país e para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, imprescindível ao crescimento sustentável das sociedades modernas.

Farmacêutico, presidente do Infarmed de 1993 a 2000 e bastonário de 2001 a 2007


 

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