Todos sabemos que a política de uma instituição ou de um país encontra no seu orçamento a demonstração da sua real concretização. É muito fácil, e é prova de que alguma “esquerda” se põe à partida de fora da corrida para a governação do país, defender-se mais e mais despesa social, sem haver qualquer preocupação quanto aos recursos necessários para o efeito.
Camaradas ,
Deu-me, neste interregno natalício, para comentar o recente,
oportuno e interessante artigo do Justo no Público. Não é novidade para o Justo se eu disser que o artigo, apesar de me ter agradado, me soube a pouco. Considero o artigo importante também pelas questões que aflora e que não resolve. A explicitação dessas questões e a tentativa de lhes dar resposta é, quiçá, uma forma de se avançar alguma coisa no sentido daquilo que é o desejo contido no artigo: a criação de uma alternativa de esquerda ao actual estado de coisas.
Procurarei dar aqui o meu modesto contributo para um debate para o qual me considero muito deficientemente apetrechado dada a complexidade do problema. Não pretendo aqui ensaiar respostas às questões que se levantam, mas tão só clamar pela criação de um espaço, na Renovação Comunista, para a sua discussão séria e conducente a conclusões.
Diz o Justo pouco depois de iniciado o texto:
“Se o desemprego não diminui, se os salários não aumentam, se os serviços públicos recuam, se o fosso que separa os ricos dos pobres se alarga, se o investimento no sector produtivo não arranca, se o capital financeiro vive os seus dias de glória, se esta situação teve uma contribuição inquestionável deste Governo, será difícil convencer os portugueses a esquecerem-se do que se passou até agora porque daqui por diante o sol brilhará para todos nós.”
Na minha opinião, o nosso problema, o problema da tal “esquerda” (seja o que for que isso signifique), não é os portugueses “esquecerem-se do que se passou até agora” mas o de acreditarem que o que se passou até agora não seria uma fatalidade, por razões internas (nacionais), mas também e fundamentalmente por razões externas, e, mais importante do que isso, acreditarem que uma outra política é possível que lhe resolva os problemas (sem esquecer que os problemas são muito diferentes entre as várias classes de portugueses). E quanto a isto o artigo do Justo é largamente omisso.
Dizer simplesmente que: “Esta situação configura um bloqueamento das escolhas político-partidárias com relevância para a governação, cada vez mais confinadas ao PS e ao PSD, como vem acontecendo desde 1987. Há 20 anos que a lógica da alternância entre estes dois partidos vem impondo uma governação cujo fio condutor acompanha disciplinadamente as exigências do programa de estabilidade e crescimento, as orientações do Banco Central Europeu e os critérios de desenvolvimento da OCDE, remetendo para mais tarde, em cada ciclo governativo que se inicia, a melhoria das condições de vida dos portugueses”, não esclarece grande coisa sobre o que me parece central.
O que será então preciso esclarecer é o que é que a tal “esquerda” defende como alternativa aos critérios de desenvolvimento da OCDE, às orientações do BCE e às exigências do PEC, tirando daí as necessárias consequências políticas, designadamente em termos do relacionamento do país com a UE.
Mais adiante, o Justo escreve: “Do que se trata, porém, é de equacionar o que vai ser ou poderá vir a ser a vida política portuguesa à luz desta conjuntura. Deixar que se instale na esquerda uma cultura imune ao escrutínio daqueles que na rua combatem e protestam contra este estado de coisas, ou construir alternativas que rompam com esta sonolência, despertando a vida partidária para patamares mais conscientes da sua missão.” (Já é a 2ª vez em pouco tempo que vejo a ideia de ruptura como condensação/simplificação daquilo que é preciso fazer, o que apenas mostra que não se sabe bem o que se quer fazer).
Ora, de facto, o que sucede é que a tal “esquerda”, agarrada aos antigos clichés e sem levar até ao fim a análise daquilo que mudou nas últimas décadas e as respectivas decorrências para a acção política, para além de criticar e de apontar o dedo ao Governo como a origem de todos os males, tem-se mostrado totalmente incapaz de apresentar uma alternativa credível à gestão do capitalismo. Com é evidente, há muito boas razões para isso, mas tal não pode deixar de nos interpelar e de nos obrigar a estudar os problemas, as novas realidades e as tarefas decorrentes, sem preconceitos.
No final do seu texto, o Justo refere: “Torna-se necessário que alguma coisa aconteça na esquerda para que alguma coisa mude no país. Usando uma fórmula que fez o seu caminho e teve o seu tempo, há indicadores que sugerem existirem condições objectivas para a mudança. Haverá condições subjectivas?”
Do meu ponto de vista, não é esta a pergunta que deve ser feita. É uma questão mal posta. A pergunta a fazer, neste contexto, será: Haverá condições para que a “esquerda” construa uma política alternativa e uma alternativa política (como costumava dizer o nosso saudoso Edgar) que venha a ser capaz de levar à criação das condições subjectivas indispensáveis ao êxito do projecto?
Todos sabemos que a política de uma instituição ou de um país encontra no seu orçamento a demonstração da sua real concretização. É muito fácil, e é prova de que alguma “esquerda” se põe à partida de fora da corrida para a governação do país, defender-se mais e mais despesa social, sem haver qualquer preocupação quanto aos recursos necessários para o efeito. Trata-se de algo que decorre naturalmente do estreito objectivo de federar descontentamentos e de contestar o "sistema" – uma atitude que sobrevaloriza a táctica relativamente à estratégia.
Uma “esquerda” que queira ser credível aos olhos da população para a vir a governar tem que abandonar esta atitude. Implicará isso que tenha que cair na simples gestão eficiente do capitalismo? O nosso desafio é demonstrar que não. Isso dá trabalho e poderá obrigar-nos a abandonar alguns clichés de que nos orgulhamos e que consideramos que fazem parte da nossa identidade de “esquerda”.
Estaremos dispostos a isso? Tenho muitas dúvidas. Mas aqui fica o desafio: Seremos capazes de nos atirar à tarefa de construir as linhas gerais de um Orçamento de Estado alternativo, conjuntamente com medidas de política que não ignorem que o país não vive isolado e não é independente do mundo que o rodeia? O que nos ensinam sobre isto as experiências estrangeiras, designadamente da Itália e do Brasil?
Abraços a todos e votos de um Ano Novo cheio de alternativas
João Cunha Serra