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14 DE DEZEMBRO DE 2008, DOMINGO
POR: Cipriano Justo
Fórum Democracia e Serviços Públicos
A mudança na política de saúde
"O que é uma política de esquerda em Saúde e quais são as mudanças que é necessário operar nas correlativas funções do Estado e nos serviços públicos que lhe devem servir de suporte instrumental?" Leia aqui a intervenção de Cipriano Justo no debate dedicada à saúde, que teve lugar no Fórum Democracia e Serviços Públicos, que se realizou na Faculdade de Letras e na Aula Magna.
O que é uma política de esquerda em Saúde e quais são as mudanças que é necessário operar nas correlativas funções do Estado e nos serviços públicos que lhe devem servir de suporte instrumental?

Uma política de esquerda em Saúde é termos provisão pública, financiamento público e gestão pública, ou é muito mais do que isso?

Uma política de esquerda em Saúde é continuarmos a alimentar o complexo médico-industrial, ou irmos mais além, e fazermos o caminho inverso, partindo dos resultados que queremos obter, seleccionando os processos que melhor se lhes adeqúem e ir reconfigurando o sistema em função das melhores evidências alternativas?

A centralidade do complexo médico-industrial na definição das políticas de saúde decorre da centralidade da doença nos critérios de distribuição dos recursos financeiros que lhe são atribuídos. É uma política baseada no post facto. È uma política que se deixa contaminar com as premissas de que se alimenta.

Recentrar a política de saúde nos resultados seria dar prioridade à manutenção e protecção da saúde, de que o diagnóstico e tratamento fazem parte, enquanto resposta a um estado de excepção – estar doente.

Tenhamos presente que para uma esperança de vida à nascença de 80 anos, a esperança de vida sem doença é de 70 anos. E uma vez que em algum momento das nossas vidas havemos de adoecer, então a finalidade de uma política de saúde será adoecer o menor número de vezes possível, o mais tarde possível e com a menor gravidade possível.

Para responder às situações de excepção existe toda uma longa tradição de saberes, conhecimentos e competências acumulados. Os cânones da medicina científica estão hoje bem consolidados e sem ela os padrões de bem-estar seriam certamente outros

Porém, foi a diminuição da dimensão das famílias, o aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos disponíveis, o frigorífico, o saneamento básico, o acesso a água potável e a vacinação universal que fizeram toda a diferença relativamente ao que se passava antes de 1945. Foi principalmente em consequência destas condições que nestes últimos 60 anos, em Portugal, a esperança de vida passou dos 54 anos para os 80 anos.

Considerando o que constitucionalmente está consagrado em matéria de responsabilidade do Estado, a omissão mais relevante do Serviço Nacional de Saúde, embora possa não ser a mais sentida e expressa pelos portugueses, tem sido a fragilidade dos seus actuais programas de Saúde Pública. A este respeito há que lembrar as recomendações da OMS para a Região Europeia, sintetizadas na recente Carta de Tallin:

 Investir em saúde é investir no desenvolvimento humano, no bem-estar social e na prosperidade;
 É inaceitável que pessoas empobreçam em consequência da falta de saúde;
 Os sistemas de saúde devem incluir a prevenção da doença, a promoção da saúde e esforços para influenciar outros sectores;
 Os cuidados de saúde primários constituem uma plataforma para o interface entre serviços de saúde, as famílias e as comunidades, para a promoção da saúde e a cooperação intersectorial e interprofissional;

O objectivo destas recomendações, dar mais vida aos anos, já contido nas Metas da Saúde para Todos no Ano 2000, é utilizar para o efeito todos os recursos instalados nas comunidades e construir com eles uma rede de respostas aos risco a que as populações estão expostas.

As Declarações de Ottawa (1985), Jacarta (1998) e Bangkok (2005) sobre a promoção da saúde fornecem importantes orientações quanto às opções a seguir pelos governos nesta matéria:

 Defender a saúde com base nos direitos humanos e na solidariedade
 Desenvolver políticas que apoiem a saúde
 Criar ambientes favorecedores da saúde
 Reforçar a acção comunitária
 Promover a responsabilidade social no que respeita à saúde
 Consolidar e expandir as parcerias em saúde
 Aumentar a capacitação da comunidade e dos indivíduos
 Garantir uma infra-estrutura para a promoção da saúde

Apesar dos progressos verificados desde a II Guerra Mundial, as desigualdades em saúde entre os diferentes estratos da pirâmide social são evidentes. Refira-se, a título de exemplo, que a mortalidade precoce entre as mulheres do estrato sócio económico mais baixo é duas vezes superior à das mulheres do vértice da pirâmide e nos homens é duas vezes e meia superior. Foi tendo em atenção estas disparidades, publicadas pela primeira vez em 1980 no que ficou conhecido por BlacK Report, que a Comissão dos Determinantes Sociais da Saúde da OMS fez, já em 2008, um conjunto de recomendações de maneira a dar resposta às desigualdades em saúde, e que são:

 Melhorar as condições de vida diária
 Inverter a distribuição desigual do poder, do dinheiro e dos recursos tanto no plano global, como nos planos nacional e local
 Nascer e crescer saudável constituem os principais pré-requisitos para se vir a ter boas condições de vida.
 O pleno emprego, a remuneração condigna, a protecção social ao longo da vida e a existência de um sistema de saúde de cobertura universal representam a infra-estrutura social capaz de garantir iguais oportunidades de bem-estar para todos.
 Dar voz e poder às pessoas de maneira a poderem intervir activamente nas decisões,
 Desenvolver estratégias para melhorar a influência dos determinantes sociais na saúde individual e colectiva
 Alterar o sistema de governação no sentido de reforçar as políticas intersectoriais estão entre as mais importantes mudanças políticas que é necessário realizar para se anular a distância e tornar mais homogéneo o potencial de saúde de cada comunidade.

São conhecidas as razões de muitos países - de diferentes regimes políticos - por sistemas de saúde universais: (i) as imperfeições do mercado; (ii) a impossibilidade de a população em geral, ou a sua grande maioria, pagar directamente todos os serviços de que necessita; (iii) as dificuldades operacionais em discriminar quem pode de quem não se pode valer do mercado e em que situações; e (iv) a existência de externalidades positivas geradas pela presença dos estratos mais afluentes nos serviços públicos de saúde. A maior capacidade de pressão desse segmento beneficia também os mais pobres. Como disse Lord Beveridge, em 1948, justificando o NHS, políticas que são exclusivamente para pobres, são políticas pobres.

Ancorado nas recomendações de organismos internacionais de que fazemos parte, eis o que se pode considerar uma visão salutógenea das mudanças a realizar na política de saúde.

Portugal tem um Plano Nacional de Saúde cujo horizonte temporal é 2004-2010, tendo sido criado um Alto Comissariado da Saúde para o gerir. Não está em questão a bondade técnica do Plano. O que podemos e devemos questionar é a sua abrangência – 40 programas – e a infra-estrutura que não foi criada para o aplicar. Um Plano Nacional de Saúde é um compromisso que visa garantir melhorias no nível de saúde dos portugueses, atendendo às necessidades, aos recursos e à capacidade de o executar. Ora esta última condição requer uma complexa rede de parceiros e parcerias, de que os mais decisivos se encontram no nível local. Quando nem no plano regional existe essa infra-estrutura naturalmente que não se podem esperar resultados e mudanças particularmente significativas na saúde dos portugueses, para além do que o próprio processo histórico vai tornando melhor. Um Plano, é bom lembrar, seja ele de saúde ou de qualquer outra coisa, é uma intencionalidade que visa antecipar a obtenção de resultados desejáveis.

Torna-se, por isso, necessário desenvolver no nível local uma infra-estrutura centrada na gestão da saúde, com uma forte componente intersectorial e interprofissional, que vise capacitar as pessoas e as comunidades para tomarem as decisões que melhor salvaguardem o seu bem-estar. Para financiar esta infra-estrutura bastaria que anualmente os ganhos de eficiência conseguidos no tratamento da doença fossem consignados à promoção da saúde para que o peso da doença e da incapacidade baixasse dos actuais 12.5%, valor considerado inaceitável para um país considerado desenvolvido. Esta ideia de auto-sustentabilidade é particularmente desejável uma vez que estamos perante uma matéria em que só a idade e o património genético são invariáveis. Todos os restantes determinantes da saúde são modificáveis desde que as políticas sectoriais contenham, elas também, mecanismos protectores da saúde. Podemos afirmar que do ponto de vista económico este é um investimento com uma elevada taxa de retorno. Porque conhecidas que são as externalidades que lhe estão associadas, investir na manutenção da saúde é, porventura, o investimento mais rentável de uma sociedade.


14 de Dezembro de 2008


 

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