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27 DE AGOSTO DE 2007, SEGUNDA FEIRA
FONTE: Revista CIVIS 29-7-07
POR: Carlos Luís Figueira
AS CIDADES E O EXERCICIO DA DEMOCRACIA
"Os desafios que se colocam hoje à organização económica, urbanística, social das cidades, a complexidade que integram todo o conjunto de problemas que a realidade de hoje coloca como enfrentamento, objectivamente conduz, por sua vez, a que os cidadãos sejam chamados a uma maior participação nas soluções que mais directamente lhe dizem respeito, quer quanto à qualidade de vida que podem desfrutar, quer ao destino das pessoas que nela habitam."
AS CIDADES E O EXERCICIO DA DEMOCRACIA


De três a cinco de Julho decorreu na cidade de Rosário na Argentina uma Conferência organizada pela União Europeia e destinada a realizar um balanço sobre as lições e experiências da execução do Programa URB-AL, Programa que tendo como base a livre vontade de associação e cooperação entre cidades da UE e da América Latina, ao longo dos últimos três anos, foi objecto de dezenas de Seminários e reuniões que conduziram ao aprofundamento de experiências, muitas das quais desembocando em projectos, aplicados em cidades dos dois continentes, todos elas visando melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes, promover politicas de integração social, aprofundar o exercício da democracia, através de uma participação mais activa dos cidadãos.

Do balanço efectuado aos anos de vigência deste Programa foi possível identificar a mobilização financeira por parte da EU de 60 milhões de €, em apoio de 180 Projectos envolvendo 700 colectividades dos dois continentes, com os resultados mais significativos aplicados em Projectos que pela sua qualidade ultrapassaram a primeira fase de identificação de problemas para a execução de obras co-financiadas pela EU e pelo orçamento das respectivas cidades, em montantes máximos de 800.000 € por cada projecto.

Deste inventário, de experiências e lições, é ainda importante reter o facto deste Programa ter dado origem à formação de diversas estruturas ( Centro de Documentação, Observatório do Meio Ambiente Urbano, Observatório Internacional da Democracia Participativa, entre outros ) que constituem hoje fonte de compilação de experiências que resultaram dos inúmeros debates que desde o seu nascimento este Programa da EU permitiu, em torno dos mais diversos problemas, constituindo por isso mesmo uma fonte de consulta obrigatória a quem hoje se dedica ao estudo da organização planeamento e desenvolvimento sustentado das cidades e ao aprofundamento da democracia e do envolvimento livre dos cidadãos no exercício do poder .

Antes da recente Conferência de Rosário pairava a incerteza sobre o destino que a EU iria dar a este particular Programa, sentimento que atingia de forma mais evidente as diversas comunidades latino-americanas, pois terão sido estas as que mais beneficiaram da sua existência. Para seu descanso, as conclusões apontam para a sua continuidade, apesar das restrições financeiras presentes no novo orçamento comunitário, terem atingido fortemente alguns dos seus estados membros, situação que nos afectou particularmente.

Continuidade embora com outras regras e seguramente restringindo as áreas de intervenção que em síntese poderíamos considerar, de acordo com que ali foi anunciado, nas seguintes direcções : (i) desenvolvimento económico e social das cidades ; ( ii) assegurar necessidades básicas nas cidades ; ( iii) cidadania e participação nos actos de gestão pública ; (iiii) coesão territorial ; ( iiiii) o papel e capacidade das diversas instituições na execução de diversas politicas . Paralelamente, embora sem compromissos concretos assumidos, ficou na sombra dos discursos políticos dos vários representantes da EU que estiveram presentes a possibilidade de, assegurada a continuidade deste Programa, o mesmo vir também a ser reforçado financeiramente por parte do Orçamento comunitário.

Tal generosidade deixa antever, na minha opinião, que por parte da EU o seu interesse radica em duas questões de ordem politica que se cruzam e completam. Em primeiro lugar, utilizar este Programa como instrumento de presença política de forma a não deixar este imenso e diverso território sob a influência particular dos EUA. Em segundo lugar, procurar compreender, assimilar, as experiências que desde há muito se desenvolvem através da criação e acção de movimentos de participação de cidadãos na vida das cidades, em cuja génese hoje já é possível identificar o contributo inestimável que deram para a criação de novos Partidos catapultados, alguns deles hoje em dia, para a governação de grandes países deste continente, ou para alargarem a sua influência na sociedade, de forma a poderem usufruir de reconhecida capacidade para interferirem no conteúdo das politicas que se exercem ao nível do País.

Em tal contexto e sendo certo, à luz da experiência que recolhi resultante da minha participação directa em inúmeros destes debates, que muitos deles se ficaram por manuais de boas práticas de conteúdos generalistas, ou outros a recaírem sobre a discussão de problemas assentes em realidades tão diversas que os tornavam completamente vazios de conteúdo prático. Porque as realidades e os temas que lhe tinham dado origem se tinham revelado muito distantes, entre a vida e as necessidades que se colocam à organização e planeamento das cidades na Europa e as situadas nas cidades latino americanas, a contas sobretudo com respostas para resolver problemas básicos, em torno de ausências de infra-estruturas e serviços sociais mínimos. Sendo, também certo, que muitas das conferências ou debates temáticos, acabaram por desembocar numa questão central que a todos tocava por igual. Ou seja, a necessidade de envolver mais e melhor a participação dos cidadãos no planeamento e organização da vida das respectivas cidades.

Com efeito, os níveis de globalização a que hoje assistimos, fruto dos avanços tecnológicos, ao permitir uma maior circulação de pessoas e bens, tal realidade, associado à execução de politicas neo-liberais e á financeirização das economias, teve como consequência a criação de novos problemas que hoje, de uma forma muito particular se colocam à organização das cidades, colocando as urbes e aos poderes que ai são exercidos, em múltiplas circunstâncias, a necessidade de encontrar novas respostas para novos problemas que se colocam no plano social como igualmente, com a mesma urgência, se evidenciam a necessidade de novas respostas em áreas do planeamento e da organização urbana dos espaços, assim como de encontrarem respostas que não se limitem, no plano social, a politicas assistencialistas.

De todas as formas, todas estas realidades, reflectiam uma questão central. A de que a questão do exercício do poder entrava num outro ciclo, devido não só a desigualdades que se tinham aprofundado, mas igualmente a uma maior exigência dos cidadãos, através da multiplicação de movimentos cívicos, para exigir novas respostas dos poderes políticos instituídos para os seus variados problemas. Que este múltiplo e diversos movimento social, colocava por sua vez em evidencia a crise em que se encontram as democracias representativas, fruto da desconfiança e do afastamento de um número crescente de cidadãos face aos partidos que os representavam no exercício do poder.

Desconfiança, descrença, afastamento dos cidadãos da vida dos partidos tradicionais, reflectindo a incoerência no cumprimento de promessas sacrificadas a calendários eleitorais estreitos e à pressão dos negócios, e também à ausência de politicas e propostas alternativas por parte dos partidos que se lhes opõem.

Os desafios que se colocam hoje à organização económica, urbanística, social das cidades, a complexidade que integram todo o conjunto de problemas que a realidade de hoje coloca como enfrentamento, objectivamente conduz, por sua vez, a que os cidadãos sejam chamados a uma maior participação nas soluções que mais directamente lhe dizem respeito, quer quanto à qualidade de vida que podem desfrutar, quer ao destino das pessoas que nela habitam.

Num contexto em que os efeitos mais nefastos da globalização e das politicas neo-liberais que lhe estão associadas, conduz à facilidade da deslocalização de empresas na procura da maximização do lucro e por consequência ao desemprego e à decorrente acumulação de problemas sociais, mesmo que tais decisões não digam respeito ao municípios, à cidade e a quem nelas exerce o poder, as suas consequências imediatas são, em primeiro lugar, tendencialmente enfrentadas por quem gere as urbes. Porque, mesmo que o encerramento compulsivo das empresas se situe a quilómetros de distância, as pessoas vivem em ruas e casas em concreto e é sobre os poderes mais próximos que em primeira instância, tendencialmente se socorrem, para encontrar soluções para o flagelo social para que muitos foram e continuam a ser atirados.

Trata-se de pessoas em concreto. Em múltiplos casos a viverem em periferias pobres, abandonadas e degradadas ambientalmente, sem expressão urbanística minimamente integradora e socialmente confortável para quem nelas vive, deixando por sua vez claro a falência em que se encontram politicas isoladas, fundadas em actos singulares de práticas assistencialistas que, por muitos justos que possam ser os seus motivos, se revelam manifestamente ineficazes, porque dissociadas de politicas mais globais associadas ao urbanismo, à qualidade da ocupação do território, a politicas de transportes, à cultura, ao respeito pelas diferenças e sobretudo a ideias claras sobre como erguer politicas alternativas de desenvolvimento que promovam de facto a integração social das pessoas, tendo na sua génese a capacidade de fomentar o acesso ao trabalho, como actividade socialmente justa e indispensável para o ser humano.

Partindo de realidades acentuadamente diferentes, entre continente europeu e latino americano, e tendo igualmente presente que por muito úteis que se tenham revelado algumas soluções num determinado contexto, tais práticas não são exportáveis, só por si, para ambientes políticos e sociais diferenciados, o papel que até aqui têm desempenhados os movimentos de cidadania ( há quem hoje já fale em movimentos de segunda geração ) no continente latino-americano, com o Brasil a destacar-se claramente neste contexto, de todos estes movimentos, o que tem suscitado mais curiosidade, à volta do qual se observam hoje algumas experiências, ainda que rudimentares no continente europeu, é sem dúvida o que se verifica em torno da gestão do Orçamento Participativo.

Mas, antes de tentar aprofundar os limites e também contradições, os avanços e recuos, que tais movimentos organizados em torno da discussão e da participação dos cidadãos na elaboração dos orçamentos das cidades, hoje revelam, julgo necessário, deixar algumas notas prévias sobre a nossa realidade para, na minha opinião, tentar encontrar algumas explicações sobre a natureza das causas dos nossos atrasos nesta importante matéria.

Desde logo e para que a memória não se apague, para o que resultou em prejuízo, desvalorização e condicionamentos à actividade dos diversos movimentos sociais (alguns cuja génese remonta aos tempos da ditadura) em consequência das sucessivas revisões constitucionais. Lembro o papel que tiveram as Comissões de Moradores e o que deixaram de ter após a primeira das revisões da Constituição. Mas também o que lhe deu origem e o papel que tiveram, perante os mesmos, os partidos tradicionais.

Na minha opinião, os diversos movimentos de cidadania no continente europeu e em particular no nosso País nascem um tanto à margem do movimento operário e sindical, enquanto no continente latino-americano o movimento sindical e operário esteve na sua génese. Aqui, surgem com uma composição fundamentalmente integrada por camadas urbanas, com a agravante dos partidos existentes terem procurado, desde o seu início, “ controlarem “ os seus objectivos e expressões, o que desde logo limitou, ou tem até aqui limitado, a sua amplitude e credibilidade. Nasceram, noutros casos, como produto ou consequência, de expressões de divergências internas que atravessaram e atravessam os Partidos tradicionais e não como produto de respostas autónomas da sociedade.

Embora estes factores não possam ser erguidos, só por si, como eternamente condicionantes, até agora têm sido fortemente limitadores da sua expressão e alargamento da sua influência social e politica, ao nível do exercício do poder. As excepções que se podem e têm de registar a esta lógica, ( eleições últimas para a Presidência da República e intercalares para a Câmara de Lisboa ) têm, na minha visão, de ser entendidas como resposta de sectores largos da sociedade, cansados da ausência de propostas de rotura.

A maior ou menor credibilidade dos movimentos de cidadania está assim, na minha perspectiva, associada à definição dos seus objectivos em concreto, à coerência que demonstrarem na sua defesa, ao reconhecimento das suas limitações quanto aos limites que integram, no plano da transformação das sociedades, porque só assim, do meu ponto de vista, podem caminhar para uma confederação de movimentos através da qual seja possível iniciar um novo ciclo, no qual ocupe lugar, objectivos mais vastos que tenham como meta disputar efectivamente fatias do poder para inverter politicas e abrir um novo caminho de consolidação da esperança de erguer um mundo melhor, mais justo, menos desigual.

Voltando ao Orçamento Participativo as experiências mais conseguidas, porque mais consistente e prolongadas neste processo, têm múltiplos exemplos no vasto território do Brasil. Mas mesmo aqui, com avanços e fortes recuos, bastando para tal que a maioria politica dos municípios caia nas mãos de outra força politica. O que significa que o processo não só está longe de estar consolidado, e só o pode estar se beneficiar de amplo apoio social de forma a que, só por si, independentemente das oscilações politicas na formação do poder, decorrente dos ciclos eleitorais em democracia, se imponha como processo. São raros os casos em que assim foi.

A crédito da participação dos cidadãos através das suas organizações autónomas na discussão do orçamento das cidades, está o facto de terem obtido, pela primeira vez ao longo de décadas de exercício do poder, a integração de verbas significativas destinadas a melhorar a vida de periferias pobres e degradadas sem um mínimo de condições de vida, nem de serviços sociais públicos. Mas, mesmo neste contexto, à derrotas cujas causas estão associadas a não se ter tido em conta o necessário equilíbrio, na discussão de um orçamento, entre a legitimidade democrática que lhe foi conferida pelo voto popular ( no qual não pode ser só contabilizado o voto originário das periferias pobres ) mas que antes resulta da expressão de um voto livre e democrático cuja legitimidade não pode ser posta em causa. É esta tensão dialéctica, entre estes dois poderes, que se não for devidamente equilibrada conduz e tem conduzido a perdas piores. Ou seja, à eliminação, sem protesto, da participação cidadã, na discussão do Orçamento da sua cidade.

Noutro plano, em torno da participação cidadã no Orçamento Participativo, pode desenhar-se um exercício não só de simulacro democrático, como de instrumento de propaganda eleitoral, realizada através da mais descabelada instrumentalização do exercício do poder, paga através dos dinheiros de todos nós. Significa dizer que conduzir a participação dos cidadãos na discussão do orçamento da sua cidade, tem de ser um processo e não um acto isolado em função de conveniências eleitorais ou de peça de adorno para embelezar o poder que se exerce. Significa, à nossa escala, poder passar da discussão em torno das obras mais imediatas cuja premência é mais sentida ( o que em si mesmo já não é mau ) para uma outra escala, para a qual os cidadãos são chamados a discutir maiores opções para o futuro do desenvolvimento das suas cidades, ou de segmentos importantes do seu território, sobretudo se estamos em presença de vultuosas e importantes modificações do seu uso.

Há exemplos na Europa Comunitária que apontam e têm provada experiência neste caminho. Aqui bem próximo, Sevilha foi este ano premiada pelo trabalho que desenvolveu com participação popular na recuperação urbanística e social de um bairro da cidade. Nos arredores de Barcelona, uma outra cidade pertencente à sua área metropolitana, foi nesta Conferência de Rosário apresentada no mesmo sentido como exemplo a seguir. Ganha maior folgo este processo, mesmo que por vezes se nos afigure como improvável e inatingível. O processo, o caminho, de termos mais e melhor democracia. Mais e melhores cidadãos, interessados e intervenientes quanto ao seu futuro e ao destino a dar às cidades onde vivem.

carlos-figueira@clix.pt
2007-07-29


Fontes de consulta :

www.observ-ocd.org
www.centrourbal.com
www.omau-malaga.com


 
Orçamentos participativos
Enviado por Paulo Jacinto, em 29-08-2007 às 21:15:51
Bom contributo para a necessária discussão sobre orçamentos participativos. Venham mais achegas sobre o tema.

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