27 DE MAIO DE 2013, SEGUNDA FEIRA
Mário de Carvalho
Gaspar - Um Enviado dos Tugues
imagem de Rui Pereira
(clicar na imagem para ver em ponto grande)
Convém não exagerar. A opinião pública tende a ver no doutor Gaspar, uma espécie de contabilista agarotado, agarrado à sua máquina de calcular com uma obstinação autista. Na melhor das hipóteses, seria um miúdo lunático que retiraram dum open-space de Bruxelas, para lhe oferecerem um paÃs, convidando-o a pontapear. Algumas más vontades, sempre prontas a diminuir, lembrariam mesmo um manÃaco perigoso, obcecado pela desolação dos desertos ou pela humidade pútrida dos lodaçais. Mais desprimorosa é a imagem, desenhada por almas rancorosas, do lulu da Pomerânia, «arf!-arf!», desvelando-se ao mero «Hüpfe!» do dono.
Saiba-se que o doutor Gaspar é um ente doutÃssimo, ávido de regras de três, raÃzes quadradas e algoritmos. Não tem culpa de que alguém, impando de sinistrude, o tenha sujeitado a uma tóxica barrela do cérebro. Foram-lhe diluÃdos o sentido do ridÃculo, o respeito pelas instituições e a consideração pelos outros. Há outros casos, aliás aflitivos, no governo e seus subúrbios. Aqui não se trata do videirinho furão, manhoso até dizer basta, capaz de vender pai e mãe, repetidor da discursata que os otários gostam de ouvir. É, antes, o homem, que entra no jogo democrático com o enfado e a condescendência, mal disfarçada, com que nós visitamos uma escola infantil e nos prestamos à quelas perguntas e comemos aqueles lanches. Sente à ilharga um ordenamento jurÃdico, uma constituição empata-modas, práticas gratuitas de democracia, protocolos poeirentos da República Portuguesa, enfadonhas eleições... Que bagatelas, perante o deslumbramento, refulgente de previsibilidade, do deve-e-haver, desde que não se contamine com o real. Os números entretêm-se uns com os outros, não incomodam…
Lembram-se do doutor medieval, nas suas vestes negras, cobertas de pó, livros empilhados ao dorso duma mula ronceira, pelas asperezas dos caminhos, endireitando as almas à s cominações de Deus? Assim é este rapaz, iluminado por dentro por um resplendor que parece ateado nas subtilezas da bruxologia. Não lhe subestimem a ciência nem o entendimento. Algum dos meus leitores se habilitaria a distinguir uma feiticeira, disfarçada pelas manhas e agudezas com que o demónio a dotou? Duvido. Rapidamente seria endrominado e confundido pelo Maligno, ainda que tivesse apelado ao Malho das Feiticeiras do sábio Heinrich Kramer e à s mais subtis reflexões dos nossos inquisidores. Houve quem consumisse uma vida inteira a estudar os sinais das bruxas sendo no entanto, desoladamente ineficaz na caça à s namoradas do demo. Ao contrário, alguns jovens letrados eram possuidores duma perspicácia fulminante que os conduzia em cheio ao coração do «Sabbat». Assim é este ministro das Finanças. CompetentÃssimo em bruxologia, capaz de instalar uma polé e acender uma fogueira em cada lar.
E se me disserem que eu exagero nesta analogia, que o doutor Gaspar não saberá tanto de bruxologia como isso, embora tenha estudado bastante (especialmente pelo prisma quantitativo), então deixem-me recorrer a outra, menos assombrada: o sistema ptolemaico que continuou a ser preservado, ensinado e defendido depois de Galileu. Todas as objecções ao modelo eram superadas por novos acrescentos, num intrincado de cálculos e medições que ergueu uma estrutura de tal complexidade que não se absorvia em poucos anos. Era preciso ter uma mente geométrica, uma altÃssima capacidade de abstracção e uma profusa dedicação aos números para atinar com aquilo. Impunha-se a aplicação de um espÃrito qualificado, meticuloso e incansável como é, decerto, o do doutor Gaspar. Há que conceder-lhe, com lealdade, estas virtudes.
Pequena contrariedade: o sistema ptolemaico (já não direi o mesmo da bruxologia…) era completamente falso. A aplicação nele do brilhantismo, do estudo, e da superioridade intelectuais foi um desperdÃcio portentoso.
Existem pelo mundo, para mal dele e dos nossos pecados, uma sedes envidraçadas onde se cultua a ganância (a deusa megera Gridisgude) e oficiam sacerdotes de gravata e sermonário em lÃngua de pau. Aà correm a avidez dos negócios como prática e o darwinismo social mais repulsivo, como doutrina. Uma vez por ano, vão em peregrinação ao túmulo do humanista Adam Smith e pisoteiam-no com fúria em bizarras cerimónias nocturnas. Quando o doutor Gaspar era mais verde e ainda tinha umas meninges tenras, foi capturado pelos sicários e prolongadamente sujeito a uma lavagem ao cérebro que lhe removeu a capacidade de interrogação e de crÃtica e deixou entornada uma baba sulfúrea, espessa de superstições, onde borbulham escuras excrescências como os vocábulos «mercado», «alavancagem», «competitividade», «margem financeira», «reajustamento» e «trade finance».
Querer discutir uma superstição, refutar um bruxólogo ou convencer um ptolemaico bradando certa frase emblemática, «espreitem pelo telescópio!», é, de todo, inútil. O dr. Gaspar deve ser, pura e simplesmente, arredado e devolvido ao seu «scriptorium», aos seus ábacos, às suas visões.
Provavelmente, à data da publicação deste texto, o doutor Gaspar já estará de malas aviadas. Começa a haver sinais de saturação. Como diz o velho provérbio, «quando a árvore cai, espalham-se os macacos>». Ei-los que já correm.
Mas os partidos que têm exercido o poder refervilham de terraplanistas análogos, servidores da mesma deusa Gridisgude, imunda e obscena. Fique então, ao menos, a advertência.
Ainda vai ser preciso mais unidade e força de vontade para derrubar o XIX Governo, que deixar ir só o ministro Gaspar para o seu "scriptorium" não é suficiente. Tem que ir toda a comandita.
Por isso espero ver-vos a todos por lá.
Ab. António Melo